É este um Outono triste, pelos vistos. De Sul a Norte, por ordem inversa da habitual, porque ainda neste caso me parece haver um Norte mais sólido. Numa curta permanência, após umas boas centenas de quilómetros percorridos e umas dezenas de pessoas contactadas, a imagem é desoladora:
- oferta de trabalho sério inexistente, substituída por oportunismos de toda a ordem, no limiar da escravatura de mão-de-obra; o que aparece é a oferta de trabalho precário nos chamados «call-center», entenda-se postos de telefonista onde se passa o dia a tentar impingir a pessoas sem dinheiro para o essencial o supérfluo que elas não querem nem pediram; postos pagos à peça por cliente angariado ou, no limite da generosidade, a pouco mais de dois euros à hora. Venda de ilusões de sucesso mediático em concursos para estrelas do écran ou do espectáculo, onde se consome uma juventude a quem se pinta uma sociedade virtual, com uma comunicação social irresponsável a incentivar o supérfluo e a mostrar como regra uma sociedade de minorias privilegiadas, corruptas e egoístas.
- uma escola sem professores com milhares de candidatos sem escola, incapaz de cumprir programas, desinteressada dum mínimo de exigência, em que mesmo as associações de pais, propugnando a inexistência de exames, parecem ter optado pela obtenção dum diploma sem conteúdo em detrimento duma formação séria.
- justiça sem meios, desorientada por intervenções abusivas de outros poderes ou por uma pressão mediática voraz de sensações fortes, a maior parte das vezes incompetente e incapaz de compreender o correcto funcionamento do poder judicial. Com ajudas do ministro ou do próprio primeiro ministro, um a sugerir o encerramento de tribunais e o outro a alvitrar levianamente – a sua eterna tendência para o sensacionalismo – que professores desempregados possam ser assessores de juízes (já agora, por que não hão-de ser assistentes de cirurgiões, com os atrasos nas listas de espera da saúde?).
- finanças à deriva, entre o desejo (sincero?) do Ministro de pôr ordem na casa e a pressão eleitoralista do Primeiro Ministro a pensar em manter o poder a todo o custo. Donde resulta um perigoso percurso de resvalamento do défice, só travado a golpes de alienação de tudo o que tem algum valor, desde empresas públicas a impostos futuros, numa voracidade só comparável à de algumas tiranias medievais. Por caminhos perfeitamente anacrónicos, desacreditando a imagem do serviço público que é a espinha dorsal da soberania, a administração fiscal, para confiar a missão a iluminados provenientes do sector privado, com os vícios que são imagináveis, com as cumplicidades que se adivinham, desmotivando ao passar um corpo de funcionários a quem nunca deu condições de confiança e de independência para defenderem os interesses vitais do Estado.
- serviço de saúde precário, desfavorecendo os mais carenciados e apostando mais uma vez nas virtudes do mercado; mesmo perante os escândalos que se anunciam na gestão dos hospitais privatizados e as
queixas frequentes quanto à qualidade dos serviços. Desmotivação geral de médicos, enfermeiros ou outros agentes da saúde, a quem não se paga o que se deve a tempo e horas, originando justas greves e outras acções reivindicativas.
- informação que passou a ser propaganda, com o triste episódio da intervenção desastrosa do ministro a propósito dum comentador político prestigiado, com a criação duma central de informação pletórica e abrangente, com a nomeação de comissários políticos para órgãos de informação públicos, com o anúncio de medidas-teste que nunca passarão de anúncios, com a tentativa de governar pela televisão, acreditando no velho ditado de que, em política, o que parece é!
E o que parece é que este primeiro ministro, investido no cargo por acaso infeliz duma democracia doente, sem experiência governativa e com uma singular visão da política como espectáculo de luzes e lantejoulas, fará no governo o que sempre fez nos cargos por onde passou: anunciará obra que nunca será capaz de executar; fará a competente despesa, que os sucessores pagarão; fugirá a tempo de sacudir a água do capote, inventando um bode expiatório qualquer, e irá divertir-se à custa do pagode, em festas e diversões por onde não passa a crise. Os buracos, esses, são para durar: como o túnel das amoreiras, com os caboucos mal tapados por cartazes bem significativos, que são todo o seu programa: um país de rock e de futebol!
Luxemburgo, 7 de Novembro de 2004.