Manuel Igreja

Manuel Igreja

Conto de Natal : O Milagre da Lenha

- Pois é como lhe digo, meu senhor. Antigamente, a lenha era um verdadeiro luxo em casa de gente pobre. Muito mais que hoje a luz ou o gás que estão agora mesmo à mão de semear conforme as posses de cada um.
Assim falava o velho sentado no muro que ladeava a horta tendo a estrada como extrema. Gostava de se sentar nele sempre que as condições do clima o permitiam. Então quando o dia se apresentava soalheiro, tirando o subir a casa para as refeições, deixava as horas escorrerem sempre ali à espera de alguém com que pudesse desfiar conversa. Era quando as suas memórias vinham ao de cima num rosário de peças e peripécias de tempos idos.
- Então mas havendo tanta mata por aí, não faltam pinheiros, porque é que a lenha era assim tão escassa? Perguntou o interlocutor.
- Pois, havia muita lenha, havia, mas era só de alguns. Dos ricos. Dos donos dos terrenos. Os outros, os que não tinham bens ao luar, como se costumava dizer, viam-na mas não lhe chegavam. A não ser às escondidas e à pressa. Olhe que chegava a haver casos em que um cristão se aventurava terreno adentro, amontoava alguns ramos, atava-os, e quando os ia pôr às costas, aparecia o dono e obrigava-o a deixar ali os molhos já prontinhos para carregar e trazer para casa.
- Completa injustiça e puro aproveitamento do trabalho e da miséria dos outros…
- Pois. Mas só fosse só isso! Tempos de fome negra.
- Pelo que me diz, lareira de jeito em casa só para alguns.
- Se não havia lenha de jeito..., mas e o trabalho que dava trazer algum migalho dela para casa!? Olhe, por exemplo: Ali ao fundo no caminho que vai para a serra de S. Domingos, a páginas tantas era um corrupio. As mulheres em fila, às carreiras, pareciam formigas. Fileiras de vinte ou mais, lá vinham elas da serra carregadas com os chamiços que se apanhavam na serra. Nunca houve por lá grandes arvoredos como ainda agora, a não ser em torno da capela pois aquilo é só fragas, mas sempre se deitava a mão a algumas argalhas de giesta e de tojo. A serra chegou a ser dividida pelas quatros freguesias que estão em ser redor. Todas tinham o seu território para a lenha devidamente estabelecido. Quando alguém se aventurava a passar da linha que não estava desenhada mas se sabia, mais coisa menos coisa, sujeitava-se a levar com um fueiro pelas costas abaixo caso fosse apanhado naquilo que era dos outros.
- Leis antigas, feitas nem se sabe por quem.
- Sim. Perdem-se no tempo. Agora imagine vossemecê, em pleno inverno com os caminhos cheios de codo ou neve, uma pessoa a pé andar no ir e no vir mais de meia dúzia de quilómetros, em busca de uns aranhiços para acender o lume em casa.
- Nem imagino…
- Por falar nisso e já que estamos no Natal, vou-lhe contar uma história que aconteceu ainda eu não era nascido. Foi no tempo do Sidónio, um presidente que foi muito popular, mas que morreu assassinado em 1918 em Lisboa. Havia aí na freguesia uma mulher, a Felismina, que vivia sozinha porque era viúva. O homem tinha morrido com a peste espanhola, e o filho tinha embarcado para o Brasil. Nesses anos foi muita gente para lá, e daqui foram alguns também. Não seria velha, aos olhos de hoje, mas quem andasse pouco mais acima dos quarenta estava pior que agora alguém com oitenta. Dizem que era uma mulher de garra ainda que doente e gasta pelas agruras da vida. Panca daqui, panca dali lá se ia governando. Não parava e era pessoa de grande trabalho em torno do pouco ou nada que tinha e em casa de quem a rogava para trabalhar.
- Vivia sozinha.
- Vivia, mas tinha uma grande esperança. Contava que a todo o instante o seu filho brasileiro lhe entrasse portas adentro. Ele andava por lá do outro lado do mar, mas parece que a vida não lhe tinha corrido de grande jeito. Alguns enriqueceram, mas a sorte não foi igual para todos. A Felismina pelo Natal era como se alguma coisa lhe dissesse que o filho lhe ia aparecer. Por isso, fazia questão de na noite da consoada, ter uma lareira acesa e de lambras a esquentar a cara. Um ano, deitou-se à serra pelo princípio da tarde sozinha. Estava uma invernia de meter medo, as pedras mal se viam cobertas de neve, mas ela afoita e com a ideia do lume que se visse, não se demoveu e foi na sua missão. Deu as voltas que tinha que dar para conseguir lenha, juntou-a, mas faltava-lhe um toco a sério para por a arder. Nem deu pelas horas a passar e quando nisto era noite e caía neve que Deus Nosso Senhor a dava. Estava tudo branco como cal e nem os trilhos se viam para uma jornada de regresso segura. Não teve outro remédio que calcorrear o nevão, mas a lenha é que não a deixava ficar. Fez o carrego e botou pés a caminho.
- Já noite pelo que percebo.
- Como breu. Escuro como tempo de inverno que se preze. Mas já me esquecia. Pela serra acima ia o caminho estreito que ainda se vê. Num dado ponto, havia no chão um canto desenhado tipo um quadrado mais fofo de musgo. Diziam os antigos que é o sítio onde dormiu Nossa Senhora quando por ali passou com o Menino Jesus, o S. José e mais o burrinho quando fugiam dos malvados que lhes queriam fazer mal. Não sei. Bem, mas o que sucedeu foi que como aquilo fazia um certo abrigo por causa de um penedo que abrigava do vento, a Felismina resolveu acoitar-se um pouco à espera de melhoras do tempo. Pode até parecer impossível mas o certo é que adormeceu. Sonhou. Teve um sonho em que se via a consoar na companhia da Sagrada Família. Não faltava o lume a arder, os postes com a Ceia de bacalhau e até as rabanadas. Até o burrinho e a vaquinha fizeram parte do sonho. Deve ter sido um regalo para ela, pois como se sabe enquanto o sonhar se desenrola, não há outra realidade. Aquilo acontece mesmo. Não há impossíveis. Tanto não há que até o filho brasileiro compareceu na Ceia de natal passada na cabeça da Felismina.
- Mas então ficou ali muito tempo ao frio, coitada.
- Deve ter sido um bom pedaço, deve. Não deve ter morrido tolhida de frio por milagre. Mas milagre foi o que lhe vou contar a seguir. Acontece que depois de acordar e de olhar em volta ainda meio estremunhada, a Felismina meteu-se a regressar a casa com a lenha às costas apesar de o chão estar mais escorregadio que lameiro encharcado e enlameado. Era só gelo. Caiu algumas vezes, mas não largava a braçada de lenha nem o toco para o lume que desejava acender em casa. Queira continuar a Ceia do sonho. Digo eu. Aleijou-se mas não desistiu. Aqueles paus eram como uns filhos que não podia largar. Mas largou, a pobre. Deu novo tombo e não se levantou…

- Morreu?
- Não senhor. Perdeu a consciência. Desmaiou. Valeu-lhe que um punhado de homens se pôs em cuidados e foi em busca dela quando na terra deram conta do seu sumiço por não se ver fumo a sair da chaminé de sua casa. Mas agora vem o espanto. Trouxeram-na amparada para casa convencendo-a a muito custo a deixar a lenha. Ela entrou, mas não deixou que mais ninguém passasse a porta. Deve ter tido um qualquer pressentimento. Então veja lá o meu amigo, que sentado ao lume que ardia que era uma beleza estava o António filho da Felismina já com a Ceia de Natal preparada.
- A sério?
- É o que lhe digo. No dia seguinte no fim da missa de Natal, mãe e filho disseram que tinham consoado com a Sagrada Família e com as outras figuras do presépio. Claro que ninguém acreditou e quase os deram como atolambados. Mas repare. Não faltou quem fosse capaz de jurar que no presépio colocado no adro, muitas das figuras não estavam no mesmo sítio em que formam colocadas por quem o fez como todos os anos. Eu nem sei que diga, e você? Acredita que houve milagre?


Partilhar:

+ Crónicas