A infeliz declaração do ministro do interior francês Claude Guéant, ao pretender exaltar a acção do seu chefe, o presidente Sarkozi, designando por cruzada a activa campanha deste para arrastar os aliados numa intervenção armada na Líbia, atraiu críticas ferozes da oposição e da comunicação social, cada vez mais exigentes com as palavras incómodas ou evocadoras de períodos mais sombrios da História. E o caso não é para menos: para além das palavras que saem descuidadamente da boca de quem as tem no coração e no pensamento, a iniciativa do presidente francês, a braços com sérias dificuldades internas, com uma imagem pelas ruas da amargura nas sondagens e com o seu partido em derrocada nas eleições cantonais, não pode deixar de suscitar curiosas semelhanças com o fervor cruzadista da Idade Média.
Ninguém de bom senso na Europa verá o coronel Kadafi como um líder exemplar, observador estrénuo dos direitos humanos ou da democracia com que os Estados ocidentais legitimam a sua governação ou as suas patifarias. Mas a urgência com que o presidente francês se colocou em bicos de pés a pretexto de defender os direitos humanos dos insurrectos líbios releva certamente de muita hipocrisia e de outro tanto oportunismo.
Os mesmos Estados que, após terem bombardeado Trípoli e Benghazi (Estados Unidos) ou terem sofrido atentados , alegadamente encomendados pelo regime de Kadafi, contra aviões civis nos anos oitenta, com grande número de vítimas, tinham-se acomodado, após um período decente de sanções, à convivência pacífica com ele e aos rendosos negócios no seu país. Os mesmos que se apressam a eliminar Kadafi convivem de consciência leve com inúmeros ditadores ou regimes autoritários e violentos, desde que daí tirem proveito político ou económico.
Em plena crise económica, com as incertezas que pairam sobre o sistema capitalista nos moldes em que tem reinado globalmente, muito especialmente com as previsíveis dificuldades de garantir a energia necessária ao desenvolvimento, as insurreições em certos países da orla Sul do Mediterrâneo e em algumas monarquias árabes não deixam de causar uma certa perplexidade, atendendo sobretudo à forma com têm sido iniciados os movimentos de contestação e à rapidez com que os países industrializados agarram o pretexto para impor os poderes que mais lhes convêm.
O movimento, analisado globalmente, não deixa de parecer estranhamente uma cruzada de tempos modernos. Não se trata, naturalmente, de conquistar santuários de culto a quaisquer turcos ou proteger lugares santos das incursões de qualquer Saladino, supondo que as cruzadas alguma vez tiveram esse puro objectivo religioso, para além dos apetites bem mais profanos dos nobres europeus e do Papado.
Não, a doutrina que sustenta a actual cruzada é a de um liberalismo que necessita, para se manter, de impor globalmente a sua normalização a todos os povos, de modo a garantir o acesso sem entraves a matérias -primas, à energia barata e a um mercado universal. Para tanto, necessita de acabar com diferenças religiosas, culturais ou sociais, ou, pelo menos, torná-las inofensivas para a sua estratégia de expansão e conquista do domínio global. E, como bula, basta-lhe uma autorização limitada da frágil autoridade das Nações Unidas, invocando piedosamente a defesa dos direitos humanos.
Bastou uma semana para se ver como os novos chefes cruzados interpretaram a autorização arrancada a ferros a um Conselho de Segurança dividido: já se lê nas declarações públicas e nos relatos militares o verdadeiro objectivo que os move, pois, da simples necessidade de impor um bloqueio aéreo para proteger as populações civis, passou-se rapidamente ao propósito de operar uma mudança de regime, em flagrante violação do direito dos povos consagrado na Carta das Nações Unidas, destruindo o aparelho militar dum estado soberano ou mesmo, ainda que sem o confessar, eliminando Kadafi, apoiando rebeldes cuja doutrina ou representatividade se desconhecem, mas dos quais se espera obediência cega e cumplicidade total para os negócios do pós-guerra.