Em Março de 2001, escrevi nesta coluna, a propósito do desastre de Entre-os-Rios:
"As centelhas (da raiva) são, desta vez, uma ponte e um rio, uma estrada e um autocarro, vias de vida que passaram a ser vias de morte, dezenas de mortos que puseram o país de luto e os políticos em acto de contrição, quero crer que sincero. Servisse nos isto de lição, teria valido de redenção o sacrifício dos mortos e a dor das famílias. Mas já perdi a ingenuidade para acreditar que tudo vai mudar, já ganhei a lucidez pragmática de pensar que não é por mais acidente ou menos acidente que vamos mudar a nossa tendência colectiva para o desleixo e para a irresponsabilidade. E não vale muito a pena arranjar bodes expiatórios: eles só servem para nos aliviar mais uma vez o sentimento da nossa própria inércia, da nossa própria cobardia.
Defendo aqui a impunidade de eventuais responsáveis? Nem por sombras! Defendo, como sempre, que se apurem as responsabilidades, mas a todos os níveis: não adianta muito que se demita o Ministro, se o Secretário de Estado, e o Sub Secretário, e o chefe de gabinete, e os directores gerais e os presidentes dos Institutos, e os chefes disto e daquilo não forem capazes de exercer as funções que lhes cabem, e se os inspectores, os técnicos, os encarregados da manutenção assinarem de cruz os relatórios previstos na regulamentação, entre o peixinho do rio com um verde à pressão e a última anedota picante ouvida no serviço ao colega do lado. A responsabilidade é uma forma de estar na vida colectiva e quem a não sente não pode apontar o dedo a bodes expiatórios. O porreirismo devia ser banido da vida pública e da vida profissional."
Hoje, confrontado com o despacho do juíz de instrução que decide não deduzir acusação contra nenhum dos arguídos, sinto, para desgosto meu, que tinha razão. No meu País a diluição da responsabilidade até ao seu completo apagamento das contas da justiça é a prática dominante, sobretudo quando se trata de imputar responsabilidades funcionais a membros dos órgãos do Estado ou aos seus funcionários. E não me venham dizer que há uma excepção no processo da Casa Pia. O processo ainda não terminou...
Com tudo o que se escreveu na imprensa, com tudo o que se viu na televisão, não foi possível estabelecer outra causa da tragédia que não fossem as causas naturais. Não foi possível estabelecer o nexo de causalidade entre a falta de manutenção do terceiro pilar da ponte e o ou os funcionários que tinham a competência e a responsabilidade de assegurar a sua conservação; não foi possível imputar a omissão de acção a quem teve conhecimento dos relatórios que indicavam a grave deterioração do pilar; não foi possível averiguar com que fundamentos foram concedidas licenças para extracção de areias do rio, quem as concedeu, quais os limites da autorização e se a extracção se manteve nos limites da autorização ou se ultrapassou esses limites, e, neste caso, com que cumplicidades; não se averiguou por que razão, não havendo meios para reparar os defeitos conhecidos da ponte em tempo oportuno, o funcionário competente não mandou encerrar a ponte ao tráfego para impedir eventuais desastres. Os que tiveram conhecimento, os que deixaram andar, os que não fiscalizaram, os que fecharam os olhos, os que não reagiram, os que aproveitaram, todos estão limpinhos de responsabilidade, brancos como a neve!
Eu acuso:
- A chuva intensa, que fez aumentar o caudal do rio, originando uma massa enorme de água em movimento cujo impacto fez caír um pilar. Foi uma fatalidade. Como se sabe, em todo o mundo civilizado caem pontes quando há cheias!
-A incúria, que obscureceu o sentido de responsabilidade dos nossos funcionários, fiscais e outros agentes. De facto, como podiam eles resistir a um ataque generalizado de incúria?!
-O azar, que arranjou modo de fazer passar naquele preciso instante sobre a ponte um autocarro carregado de passageiros e dois automóveis!
Chuva, incúria e azar ao pelourinho! que se resgatem os homens que não tiveram culpa nenhuma! Até o facto de serem teoricamente responsáveis foi obra do azar!
Há poucos anos, o caso Dutroux actualmente em julgamento em Arlon, na Bélgica, provocou o maior levantamento popular contra as instituições. A marcha branca que gritava nas ruas por Justiça conseguiu, pelo menos, que o processo chegasse a Tribunal. Uma comissão independente, cujas sessões foram transmitidas em directo pela televisão, pôs a nú as falhas da polícia, da justiça, da administração pública
Esperemos que em Portugal haja um sobressalto idêntico. Basta de irresponsabilidade!