Alexandre Parafita

Alexandre Parafita

Geração sem memória é geração oca

Assinala-se este mês mais um ano da navegabilidade do Douro. Foi em finais de outubro de 1990, que uma embarcação turística, com 170 pessoas a bordo, subiu pela primeira vez o rio, desde o Porto até a Barca D'Alva. De então para cá, revolucionou-se o turismo de uma região e de um país. Centenas de milhares de turistas de todo o mundo, cruzeiros de luxo, milhões e milhões de euros… fluem anualmente pelas águas do Douro.

Mas será que todos os que hoje usufruem deste filão milionário saberão que a luta para tornar o Douro navegável em toda a extensão (210 quilómetros) foi dura e longa? Uma luta de David contra Golias (o Douro contra Lisboa) que começou em 1965? De início, procurava-se escoar pela via fluvial os produtos do Cachão, o ferro de Moncorvo e outras riquezas naturais, num tempo em que a instalação da indústria siderúrgica e a extração mineira (volframite, hematite, cassiterite, cromite, arsénio, manganez, antimónio, ouro, prata…), abriam horizontes novos à economia da região.

A navegabilidade impunha-se, pois, como solução. Contudo, o Douro continuava o rio de mau navegar. A memória dos naufrágios e lutos nas povoações ribeirinhas e as ermidas nas margens a recordar as tragédias dos velhinhos rabelos continuavam a lembrar os perigos seculares do rio. A remoção de obstáculos à passagem de embarcações de grande porte, assim como a construção de eclusas nas barragens, eram investimentos necessários, aos quais Lisboa virava costas. Lisboa era a capital, o resto paisagem. A luta iria, pois, ser longa e difícil. Faltavam “guerreiros” que afrontassem o regime. Afrontou-o um velho jornalista, Rogério Reis, hoje votado ao mais injusto silêncio. Alimentou durante anos uma campanha ininterrupta em prol da navegabilidade, escreveu um livro sobre o tema, fez centenas de reportagens e editoriais, conferências e ousadas interpelações a governantes (ainda o conheci nessa luta) antes e depois do 25 de abril. A batalha foi ganha, está bem de ver. Mas já não para os grandes objetivos originais (esses perderam-se), e sim para abrir passagem aos luxuosos cruzeiros.

Rogério Reis morreu invisual, num bairro social de Vila Real sem nunca ter entrado num desses cruzeiros que hoje drenam milhões Douro acima e Douro abaixo. Será que alguma vez, ao celebrar-se mais um aniversário da navegabilidade, se lembrarão dele, evocando a sua memória? Uma geração que se habitua a apagar a memória, ainda que hoje lhe corram os milhões pelas mãos, um dia acabará oca, ou, pior ainda, seca como palhas alhas.

in JN, 27-10-2017


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