Manuel Igreja

Manuel Igreja

Labaredas

É fado e é sabido. Todos os anos, mal o calor aperta e a sede desperta, Portugal começa a arder. Como se fosse sina, durante e logo a seguir, altos responsáveis da coisa pública, fazem juras a pés juntos, que agora é que vai ser.

Vai-se estudar o assunto e vão-se implementar medidas para se acabar de vez com as áreas ardidas. Ao costume e com justiça, louvam-se os bombeiros, cantam-se hossanas às atitudes heroicas, dá-se esporádico palco a um ou outro corajoso anónimo, e espera-se que chova e que ninguém morra.

As emoções jorram em grosso caudal, as lágrimas verdadeiras e de crocodilo, assumem cariz de pranto, fazem-se pontes solidárias entre quem dá e que recebe. Tocam-se as mãos que se entrelaçam, distribuem-se sentidos abraços, e deitam-se auxílios para os abertos regaços. O problema, é que se sobram as emoções, faltam-nos as reivindicações e o sentido aplicado de justiça. Ardeu tudo, morreu gente, campeia a destruição, não há nem prevenção nem eficácia na acção, mas ninguém se responsabiliza e ninguém é responsabilizado. Por isso a cena trágica quase é já tradição.

No ano que corre feito verão virado inferno, a tragédia que sempre nos parecia antes ser sem medida, foi ainda maior. Ou antes. Está a ser, pois a estação ainda nem a meio vai. Muita torreira está para vir e muito arder está para suceder. Juro que espero estar engando, mas duvido que não aumente o território ardido. Infelizmente.

Está ao que dizem, tudo a postos. Não faltam figurões com ar marcial a comandar, como não faltam braços abnegados para obedecer e lutar, mas no teatro de operações, como gostam de dizer com ar entendido, mandantes e comandantes parecem baratas tontas aflitas. Impotentes, pouco mais lhes resta do que deixar arder.

Um território desordenado e abandonado, sem granjeio e sem asseio, as labaredas espalham-se como em feno armazenado em palheiro velho provocando milhões de aflições. Alertam os estudiosos que urge planear e prevenir, mas deitam palavras ao vento que caiem em saco roto. Há más línguas que dizem que rende mais votos o apagar do que o prevenir. Será por isso? Neste pobre país de opereta estudada e encenada para proveito de uns poucos, tudo é possível.

Em cena tanto pode estar a mais sublime obra feita por cidadãos, como pode estar o mais absurdo e rasteiro episódio de uma série continuada e nunca acabada. Está-nos no sangue. Vivemos a deixar viver, sem exigir. O encolher de ombros, está a par do vergonhoso e cobarde manguito. Pode parecer, mas não é azar. Possibilitaram-nos a liberdade, mas ainda não aprendemos a tê-la e a vê-la em toda a sua verdade.

Não semearam nem semeamos a cidadania. Por isso, nos retalharam o país como se fosse uma quinta a bel-prazer de alguns para cujos bolsos todos contribuem.

Não só, mas também por isso, anualmente as labaredas fazem o verão do nosso descontentamento.


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