Manuel Igreja

Manuel Igreja

O Douro Calimero

Era uma vez um pintainho que se sentia desprotegido e abandonado por tudo e por todos. Não fazia nada por ele mesmo e passava a vida a lamentar-se. Chamava-se Calimero e atirava todas as culpas para os outros. Para ele as coisas nunca lhe corriam bem e chorava apelando à comiseração, mas nunca à justiça. Era diferente, mas não marcava a diferença.

Se bem se lembram, falo de um personagem de uma saudosa banda desenhada dos verdes anos de alguns de nós que já vamos tendo uns cabelos caiados de branco pelo grande mestre de obras chamado tempo. Eram um consolo os bonecos de então, e uma ternura o pobre pintainho recém acabado de sair do ovo.

Posto isto e para sairmos da lamechice ternurenta que não é para isso que aqui estou pelo menos por agora, só lhes digo que muito amiudadamente o Alto Douro Vinhateiro me lembra o Calimero na sua postura de desinfeliz. Tem um enorme potencial celebrado e apontado a todo o instante por muitos em muitos lugares, mas desde que se tem como terra de vinho não fala de outra coisa que não de crise e das agruras da vida.

Diz quem tem bens ao luar e cuida das videiras, que desde sempre assim foi e que nos tempos que correm o é muito mais. Longe de mim colocar semelhante coisa em causa, pois bem sei que não está fácil para a maioria chegar à vindima com uvas bonitas e fartas, nem encontrar gente que beba o vinho a preços que deem para o gasto. Grosso modo é assim, nesta pobre região rica encanto da natureza mais encantadora.

Feito metrópole da cidade grande onde se estabeleceram os senhores do negócio e de onde tudo se influenciava e para onde corria e corre o grosso dos proveitos, no Alto Douro habituamo-nos a obedecer e a esperar por leis balizadoras de um negócio em que dezenas de milhar produzem para vender a meia dúzia de compradores por força das particularidades do setor. Mas mais coisa menos coisa, pelo menos durante setenta de duzentos e cinquenta anos lá se foi andando quanto e rindo.

O problema é que como dizia o grande poeta, mudam-se os tempos, mudam-se as vontades, ainda que nem sempre totalmente para melhor. No momento certo não se soube ou não se quis discutir e defender o futuro e a cómoda proteção acabou. Durante longos vinte e cinco anos, andou-se sem rei nem roque. Cometeram-se erros, medrou o desleixo, alguns aproveitaram muito, mas poucos se ralaram. Dormiu-se e dorme-se no que toca à organização dos produtores e agora começa a restar para comer pouco mais que o sono.

Perante a profunda alteração institucional que foi a retida de poderes à Casa do Douro tratada pelos diversos governos como criada velha sem préstimo que se despede sem pena e com toda a ligeireza, a profissão nada fez. Deixou-se andar sem pedir contas, sem fazer cumprir a lei própria de todas as associações, atirando culpas para alheios como se estes fossem abstrações ou formas de vulto em nevoeiro cerrado.

Passaram muitas luas, desbaratou-se o que havia para desbaratar, deixou-se ruir materialmente o que havia para ruir, receberam-se promessas de mundo e de fundos, estudaram-se soluções, mas nada. De costas voltadas uns para os outros, procuraram-se saídas que em boa parte levaram a um sítio tipo purgatório em que se troca liquido por liquidez por mor das aflições nos momentos em que se esbarra com a parede. Cada um sabe tudo, mesmo que vá em direção a nada.

Enquanto isso o Douro Calimero não se calou nem cala, quedando-se à espera que chova no nabal e que venha o sol para a eira. Mesmo quando na legislatura anterior, o governo em exercício atabalhoadamente e sem grande noção das consequências decidiu afundar o Titanic encalhado na rua dos Camilos, as reações foram ou mortiças ou desenhadas pelos interesses da politica mais imediata e mais a jeito. Por cá somente se ouviram choramingos.

Não sendo de todo aquela medida a melhor saída para o principio do fim de um conjunto de regras e de uma forma de organização, não deixou de prever duas opções, sendo que na primeira se deu a oportunidade para que de dentro da situação por via da representatividade do plenário de associados, se encontrasse a continuidade mínima. Mas não. Duas reuniões convocadas para o efeito, pura e simplesmente não aconteceram por falta de quórum.

Falhada a primeira alternativa passou-se à segunda. Abriu-se um concurso público que decorreu, mas que à velha e boa maneira foi de imediato impugnado. Anda arrastado no tribunal competente há dois anos. Um instante na tradição judicial em Portugal. Enquanto isso, o único concorrente assumiu funções, indicou representantes para o órgão efetivo do poder, o Conselho Interprofissional do IVDP, mas poucos sabem.

Dos jogos nos corredores da politica nascem rumores de que tudo se pretende alterar, se calhar para que tudo fique na mesma, mas “nem o pai morre nem a gente almoça”. E nós deixamos. Ninguém exige clarificação. Se ficam estes vamos apoiá-los se o merecerem. Se têm de ser outros, então que venham. Simples e claro como a água. Digo eu.

Mas não. O Douro prefere continuar com o discurso entorpecedor de que tem o melhor vinho do mundo e o rio e a paisagem mais deslumbrantes do universo, ao mesmo tempo que diz com meia casca de ovo na cabeça como o pintainho Calimero: - Somos uns coitadinhos. Ninguém nos liga. Pobres de nós”.


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