Alexandre Parafita

Alexandre Parafita

Para uma nova teoria do Inferno

O Inferno, por via dos catecismos e a complacência das velhas e engenhosas pedagogias, foi construído na mente de cada um de nós como esse tenebroso caldeirão cremador que nos esperará no “além”, caso os nossos passos, por cá, sigam arredios das convenções divinas. Desse jeito, numa permanente inquietação perante o mistério da morte, tudo seria visto mais ou menos assim: a alma dos que morrem arredios dessas “convenções”, terá, na melhor das hipóteses, um lugar no Purgatório (lugar transitório a que escapará após um período de purgação das suas faltas e com o contributo dos apelos e esmolas de quem por ela interceda do lado de cá…), e, na pior, terá à espera esse tal caldeirão de onde não haverá retorno. E com ele, a garantir o castigo implacável, lá estará, vigilante, o capitão das trevas, corpo peludo, cornos de chibo, rabo longo e retorcido e garras nas mãos e pés, que o povo, para evitar nomear (porque dar nome é dominar, é conferir estatuto íntimo, especial – dizem os filósofos), persiste em chamar de belbezu, chifrudo, demonho, dianho, diabelho, galhudo, rabudo, mafarrico, lusbel, lúcifer, anjo-papudo, inemigo, facanito, plascas, zarapelho, satanás, tição-negro, tardo, mefistófeles... por aí adiante.

Mas não estavam desacompanhados os catecismos nessa audaciosa missão de expor o Inferno. A Irmã Lúcia, vidente de Fátima, garantiu tê-lo visto, e descreveu-o em retrato exaustivo como sendo um “mar de fogo”, com “os demónios e as almas, como se fossem brasas transparentes e negras, com forma humana (…), entre gritos e gemidos de dor e desespero”. Enfim, uma visão, mais diabo, menos diabo, já imaginada por Dante Aliglieri na Divina Comédia e bem retratada na expressão: “Ó, vós que entrais, abandonai toda a esperança!”.

Tal como Dante nas palavras e outros nas telas, também na arte medieval os quadros do Inferno retratam a visão da terra sobre o aspeto da sua transformação nesse terrível caldeirão, deixando sempre claro como os condenados são maltratados pelos diabos, mas os diabos não são maltratados por ninguém. Assim como hoje, políticos corruptos sempre impunes e criminosos anónimos que incendeiam e destroem a Natureza desencantados com a vida (se a ela não é bela para mim, por que há de ser bela para os outros?, dirão), donos e senhores de um inframundo que manipulam à sua medida. No ar flutua uma náusea de fatalidade e uma ideia ambígua da justiça enquanto sustentáculo da esperança. E não há Inferno pior do que uma realidade que nos conduz, tal como sugerem as palavras de Dante, ao abandono de toda a esperança.

(in JN, 25-8-2017)


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