Manuel Igreja

Manuel Igreja

Quando os sinos falavam

                                                   QUANDO OS SINOS FALAVAM

 

Nascei em 1960. Era janeiro, um mês frio como era qualquer um que tivesse o Natal por perto, pois ao tempo, inverno, era mesmo inverno. Sem vergonha e sem uma réstia de sol de oras em quando como que a pedir desculpa do incómodo como agora. Homessa.

Tive sorte. Uma sorte danada, diria mesmo. As circunstancias pouco anteriores ao meu primeiro abrir de pestanas, foram suficientes para somente dar três quatro respiros antes de me tornar anjinho. Foi por pouco, e lá me ia eu entabuado de branco.

Não exagero. Desde um sair do comboio no Pinhão a toda a pressa, e uma viagem de carro-de-praça a toda a brida por aí acima até à minha aldeia, até às faltas de condições em casa para acontecer parto, que isso de hospitais para vir ao mundo foi mais tarde, tudo se conjugava para me ir sem sequer receber batismo. Mas não. Vinguei e aqui estou. Ainda bem, digo eu. 

Mas a minha sorte foi mais além. Claro que essa é a que mais conta, pois sem ela, nada mais sucederia. Acho que nem para retrato em estante daria o meu curto estar por cá. A minha outra fatia de sorte, tem a ver com a época em que nasci por mor daquilo que me foi possibilitado ainda ver e sentir num mundo que parecendo estar quietinho, se mexia um bocadinho, esfumando-se o antigo por entre a chaminé da modernidade.

Notem que ainda sou do tempo em que automóvel a cirandar nas ruelas da aldeia, era motivo de gritaria e de correrias por mais franzinas que fossem as pernas. Juro que cheguei a conhecer quem se não despisse em frente da televisão porque pensava que de lá de dentro da caixa viam tudo cá para fora. O julgar não seria firme, mas não fosse o diabo tecê-las. Depois o cuidado nunca fez mal a ninguém.      

Olhada hoje em dia essa época, pode levar-nos a imaginar dias tristes e noites aperreadas. Mas não senhor. Miséria havia, de fome era uma fartura, o frio era uma questão de hábito pois Deus dá-o conforme a roupa, mas o povo que nunca foi de vergar, espantava as tristezas e em tudo encontrava motivo para festejar.

Muitas vezes fazia-o com a alma caiada de negro, mas havendo horas de tudo, também as de alegria se faziam acontecer. Pouco se lia, pouco se comia, pouco mais se vislumbrava do que o alcance das vistas, mas falava-se, contavam-se histórias e de tudo se fazia motivo de reinação e de celebração enlaçada em muita imaginação.

Até os sinos eram chamados. Bem se sabe que chamar os crentes e alertar por causa de acontecimentos em desoras era a sua principal função, mas também eles tinham lugar no tecer de tradições e de estórias a contar e a passar de geração para geração. Há quem dissesse que alguns até falavam entre si num dialeto muito lá deles.

Não sei se acredite. Olhem, é como o caso das bruxas. Será que as há? O certo é que nos meus tempos de moço, havia quem jurasse que as via e que até as ouvia a rir de malvadas. Era só passar num cruzamento pela meia noite e logo se topavam as desgraçadas. Por vezes disfarçavam-se em caldeiros velhos e coisas do género. A sério. Sobre lobisomens não falo. Pode andar algum por aí. Sei lá.       

Quanto aos sinos, que estes dedos carregam nas teclas que querem e eu nem sempre mando. Influenciado se calhar por o que o povo dizia, tês ouvia-os eu a palavrear com estes ouvidos que a terra há-de comer. O de Alvelos, dizia: - Tem lêndeas. Tem lêndeas! Depois o de Figueira: - Eu tiro-lhas. Eu tiro-lhas. E o de Várzea: - Com que? Com que? Logo depois de novo o de Alvelos: - Com um pau. Com um pau.

Isto, quando subia ao alto da Mariola e me admirava por o mundo ser assim tão grande. Mal sabia eu o quanto ele se estendia. São léguas e mais léguas com algumas já por mim percorridas. Espero ter sorte para percorrer muitas mais, num desejo que igualmente lhe estendo.              

         

                    


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