Ana Martins tem 16 anos, estuda por opção língua mirandesa desde a primária, à semelhança de outros 400 alunos que frequentam as escolas de Miranda do Douro, sendo uma jovem que tem vaidade em falar mirandês.

A língua mirandesa faz parte do quotidiano de Ana, agora no 11.º ano, que garante que, em casa, só fala mirandês e o mesmo acontece com amigos e vizinhos, na aldeia de Malhadas, situada a cerca de seis quilómetros de Miranda do Douro.

“O português só entrou na minha vida quando entrei para a escola primária e comecei a estudar. Até aqui só falava mesmo mirandês”, disse à Lusa a jovem numa conversa tida exclusivamente em mirandês.

Depois de sair da escola, Ana apanha os transportes públicos que a levam até à sua aldeia natal. Aqui chegada, vizinhos, amigos e conterrâneos cumprimentam-se em mirandês, já que nas aldeias do concelho de Miranda do Douro esta língua ainda é utilizada pelas gerações mais velhas.

Ana não se coíbe de responder no mesmo idioma, ou até meter conversa, nem que seja para comentar o estado do tempo.

Contudo, a jovem acredita que, atualmente, os mais novos sentem um “pouquinho de vergonha” em falar o mirandês em público, reforçando que entre amigos e familiares o mirandês é a forma de comunicar mais utilizada.

“Entre nós, falamos mirandês com aquelas pessoas com quem temos mais confiança, Se tivermos um colega que sabemos que fala mirandês, falamos em mirandês. Mesmo assim, as pessoas novas e velhas têm ‘proua’ [orgulho, em mirandês] da nossa língua “, vincou.

O mirandês vai sobrevivendo à erosão dos tempos, sendo lecionado nas escolas de Miranda do Douro desde 1986. Depois desta data, centenas de alunos de várias gerações aprenderam a falar a segunda língua oficial em Portugal, estando agora espalhados por todo país e pelo mundo, exercendo as mais diversas profissões ou ocupações sociais e laborais.

“Noto que há muita gente que vem às aldeias do concelho de Miranda do Douro para ouvir falar mirandês e acho que o mirandês começa a ficar na moda, apesar de alguma resistência dos mais novos”, enfatizou a aluna.

No entanto, Ana Martins lamenta que no sistema de ensino haja poucos manuais escolares ou outros materiais para o auxílio dos professores e alunos, acrescentando que esta “falha” deveria ser colmatada pelo Ministério da Educação.

“Os professores fazem esforços, a escola também, para terem materiais didáticos, mas isso só não chega. Terá de haver mais instrumentos didáticos, no futuro, para que o mirandês seja mais divulgado, principalmente junto dos alunos mais novos”, observou.

Ana Martins, como mirandesa, defende que a língua e a cultura mirandesa andam de braço dado, exemplificando com as danças dos pauliteiros, não percebendo o porquê de a língua mirandesa estar tão esquecida, já que é um elemento identitário da cultura nacional.

A Lusa questionou a jovem sobre a legendagem da língua mirandesa nos meios de comunicação e resposta foi um redondo “não”.

“Quando alguém fala português não há legendas. Se o mirandês é segunda língua oficial porque é tem de haver?”, ripostou.

O mirandês é tido como uma língua da tradição oral e, para os seus falantes, a sua sonoridade e pronúncia são ímpares, como a Lusa pôde confirmar no decurso de uma visita a uma das aldeias do concelho onde o mirandês está bem vivo, como é Malhadas.

“Há já algumas obras literárias e de banda desenhada traduzidas para mirandês, como é caso de ‘Os Lusíadas’ ou as aventuras de Astérix, mas terá de haver outras obras importantes como ‘Os Maias’, outras escritas por autores portugueses para o mirandês ser mais cultivado e os alunos tenham mais por onde estudar”, defendeu Ana Martins.

Ana Martins defende que a disciplina de Língua e Cultura Mirandesa deveria contar para a média nacional dos alunos: “Esta seria uma maneira de valorizar o mirandês e fazer com outros alunos de outros pontos do país despertasse para esta língua”, indicou a aluna.

Segundo o diretor do Agrupamento de Escolas de Miranda do Douro, Antónimo Santos, passados 33 anos sobre a primeira aula lecionada em mirandês, num universo de 609 alunos que frequentam hoje aquele agrupamento, a maioria matricula-se na disciplina de Língua e Cultura Mirandesa, apesar de ser opcional.

Já o escritor e estudioso de Língua Mirandesa Carlos Ferreira observou que, para além do ensino, o mirandês ainda se mantém vivo nas aldeias do concelho e por vezes este falar é notado com maior intensidade quando as pessoas se juntam à espera do padeiro ou do merceeiro, ou em festas nas aldeias, havendo outros elementos de relevo, na preservação desta língua.

Por seu lado, o vendedor ambulante Daniel Tavares garante que percorre grande parte do concelho de Miranda do Douro e verifica que o mirandês está vivo e os seus termos próprios são usados.

“É uma língua bonita, do ponto de vista fonético”, constatou o comerciante, que percorre o território do concelho.

Apesar do reconhecimento oficial, feito com a publicação em Diário da República da chamada “Lei do Mirandês” em 29 de janeiro de 1999, “a segunda língua oficial em Portugal continua a não ter um enquadramento institucional adequado”, apontam os linguistas que se dedicam ao seu estudo.

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Numa pequena sala da Casa de Trás-os-Montes em Lisboa, funciona à segunda-feira e em horário pós-laboral uma aula de língua mirandesa, onde até um aluno francês de Erasmus já se inscreveu para aprender esta língua falada no nordeste transmontano.

Antes de dar início a mais uma aula, António Cangueiro, professor de mirandês, falou à Lusa sobre este seu percurso, que começou ainda com o escritor, professor universitário, estudioso e divulgador da língua mirandesa Amadeu Ferreira, que instituiu o curso em Lisboa há dez anos.

“O primeiro ano ainda foi com Amadeu Ferreira, ele vinha dar literatura e eu e outro amigo, Francisco Domingues, vínhamos dar as classes”, lembrou.

A funcionar há dois anos na Casa de Trás-os-Montes, as aulas de mirandês são atualmente lecionadas em conjunto com outra professora, Adelaide Monteiro, e “a procura tem sido bastante”, assegura.

“A prova está aqui nos cursos da Casa de Trás-os-Montes. No ano passado findaram o curso 15 alunos, um deles era de origem francesa, que veio fazer Erasmus e teve interesse, matriculou-se e frequentou o curso”, contou, assegurando que “há muito interesse desde que a língua foi aprovada como língua oficial”.

No entanto, faltam apoios do Estado: “a língua mirandesa não tem qualquer apoio oficial”, alertou.

“Eu venho para aqui a minhas despesas, a outra amiga vem cá por iniciativa própria, a Casa de Trás-os-Montes abre-nos a casa para darmos aqui o curso, mas o esforço é nosso, é pessoal, a nível do Estado não tem havido apoio nenhum para este curso, e é pena”, lamentou António Cangueiro, apoiado por alunos, de todas as idades, que iam chegando e se juntavam à conversa.

Recorda também que no ano passado, alguns representantes do Parlamento Europeu estiveram em Miranda do Douro a fazer uma auscultação à população e às escolas, “para que o Estado assinasse a Carta Europeia das Línguas Minoritárias, porque se assinar essa carta compromete-se com alguma coisa, algo que não tem feito e continua a não fazer”.

Para este professor é difícil compreender como é que o Estado aprova uma língua e depois não cria normas nem apoios financeiros anuais para a língua se poder divulgar.

Apenas em Miranda do Douro existe um professor no ensino oficial, que “é colocado todos os anos e mesmo assim é uma dificuldade enorme para ele ser colocado”.

Em Lisboa, o custo das aulas é cinco euros, um valor “simbólico” que mais não é do que uma “ajuda para pagar a luz”, refere.

A maior parte dos alunos ali inscritos mora na zona de Lisboa e inscreve-se sobretudo por curiosidade, mas também já houve alunos transmontanos e alentejanos, quase todos com formação superior, descreve António Cangueiro, traçando um perfil dos alunos.

Leonardo Antão é um desses alunos, e o mais antigo em Lisboa, tendo começado a aprender nos primeiros cursos ministrados por Amadeu Ferreira.

“Procuro vir todos os anos, pelo amor que tenho à língua mirandesa, porque a aprendi em pequenino, ao colo da minha mãe, que falava só língua mirandesa e que era, por ironia do destino, analfabeta, mas a língua dela era o mirandês”.

No extremo oposto, Gerson Costa é o aluno mais recente do curso. Inscrito desde dezembro do ano passado, este jovem, dono de uma empresa de tradução, descobriu casualmente, através da página do Facebook, que a Casa de Trás-os-Montes lecionava aulas de mirandês e que esta era a segunda língua oficial portuguesa.

Assegura que não foi por motivos profissionais, apenas por curiosidade pessoal, que se inscreveu, porque, já que está no campo das línguas, achou que “ficava bem, pelo menos, entender aquilo que é dito na outra língua portuguesa do país”.

E é nessa mesma lógica, que Gerson Costa tem dificuldade em entender como é que uma língua oficial, não o é na prática.

“Começa a haver literatura, as pessoas continuam a falar mirandês em casa, os mais velhos falam, mas para isso não era preciso ser uma língua oficial, não era preciso regulamentar. Para ser uma língua oficial, precisa de ser falada na Câmara Municipal, precisa de ser falada nas assembleias de Junta de Freguesia, precisa de ser falada no tribunal da cidade, e isso falta”.

O presidente da Casa de Trás-os-Montes, Hirondino Isaías, mostra-se empenhado na divulgação do mirandês, razão por que assinou um protocolo com a Associação de Língua Mirandesa, no sentido de criar este curso.

No entanto, queixa-se da falta que faz “o poder central dar o passo definitivo, que é o Ministério da Cultura aprovar uma pequena verba para a divulgação ao nível das escolas” em outros concelhos do país, como acontece em Miranda do Douro.

Fotos: António Pereira



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