Luis Guerra

Luis Guerra

1618

1618 é o título de um filme português atualmente em exibição nas salas de cinema, mas é também o ano de um episódio histórico para a cidade do Porto e o país em geral, como esta produção ilustra.

Nessa altura, em execução da Contrarreforma, gizada no Concílio de Trento de 1545, o Tribunal do Santo Ofício, mais conhecido por Inquisição, renovou a sua perseguição às chamadas “heresias”, incluindo o judaísmo ou, pelo menos, as “práticas judaizantes”, atendendo a que o primeiro tinha sido oficialmente banido do território nacional, mediante a partida ou conversão forçada dos judeus portugueses, em obediência ao édito do rei D. Manuel I, de 1496.

Antes disso, porém, a comunidade judaica em Portugal tinha-se visto reforçada, desde 1492, pela expulsão dos judeus do reino de Castela e Aragão (que precedeu o reino de Espanha), por ordem dos chamados ”reis católicos”, uma vez que muitos deles fugiram para o território nacional, nomeadamente para Bragança, uma das várias portas de entrada autorizadas pelo rei D. João II.

Aliás, como se pode ler na informação disponibilizada pela Câmara Municipal dessa cidade, onde existe atualmente um Centro de Interpretação da Cultura Sefardita do Nordeste Transmontano, “Durante séculos, mesmo após a conversão forçada e a instalação da Inquisição, as comunidades judaicas da região transmontana dinamizaram o crescimento económico e o ambiente social da cidade de forma hoje inesperada. Fábricas de seda, trabalho de curtumes, diversas atividades artesanais e lojas comerciais davam corpo a uma economia em que Bragança era um centro económico e financeiro significativo no contexto peninsular. Com a passagem ao tempo dos cristãos-novos, Bragança tornou-se, durante séculos um dos esteios nacionais de uma peculiar realidade de cripto-judaísmo; o marranismo português despontou não só na cidade como no distrito”.

Feito este enquadramento e voltando ao tema do filme, o episódio histórico retratado documenta duas ou três realidades importantes: por um lado, o enraizamento antigo da comunidade judaica em território português, desde tempos prévios à fundação da nacionalidade, bem como o sentimento de pertença da mesma a Portugal e às localidades onde estava radicada. Ou seja, a perseguição aos judeus, em função das suas práticas religiosas, visou cidadãos (na altura, súbditos) nacionais (e não estrangeiros ou imigrantes, ainda que nem a esses se poderia justificar a perseguição religiosa), que estavam integrados na vida social, económica e cultural do país. Ou dito por outras palavras, não eram estranhos, eram os parentes, os vizinhos, os amigos, os fornecedores, os clientes, os professores, os médicos, isto é, os concidadãos, dos nossos antepassados, senão os nossos próprios ancestrais.

Por outro lado, o filme mostra ainda uma faceta da força do municipalismo portuense, uma característica que remontava já ao tempo da sua primeira carta de foral (1123) e que fora reforçada pela carta de foral de D. Manuel (1517), mediante a sua capacidade de resistência ao poder dos responsáveis da Inquisição. Nesse sentido, antecipava já a separação entre o Estado e a Igreja que o constitucionalismo liberal haveria de consagrar mais tarde.

Contudo, estes tópicos mantêm-se atuais.

Na verdade, a emergência dos nacionalismos na Europa faz ressurgir a intolerância em relação aos que são diferentes, nomeadamente em função da sua pertença étnica ou prática religiosa, ainda que os mesmos sejam cidadãos nacionais, muitos deles nascidos em solo europeu. Sem dúvida que um dos fatores que fortalece os nacionalismos é o crescimento das desigualdades económicas e o progressivo empobrecimento e risco de exclusão social de muitas pessoas. Mas, além disso, intervém ainda nesse processo um mecanismo psicológico de procura de culpados que se ativa especialmente em situações de carência e/ou frustração, como aquela em que muitas pessoas se encontram, sendo fácil apontar para aqueles que, aparentemente, vieram de fora disputar os mesmos recursos. Na realidade, trata-se de uma representação distorcida da situação, mas que é habilmente difundida e explorada por aqueles que se querem catapultar para o poder, usando o descontentamento popular.

Na prática, é muito mais difícil perceber o modelo sistémico em que vivemos, que está a produzir uma enorme concentração da riqueza mundial e a sua desmaterialização em ativos financeiros que não precisam de criar emprego para a sua produção e valorização, fazendo cair a necessidade de mão de obra e, por tabela, o nível das remunerações na economia produtiva.

Por outro lado, a descentralização permite conferir autonomia administrativa às comunidades locais e regionais, devolvendo-lhes o poder de decisão em matérias que lhes dizem diretamente respeito, de acordo com o princípio da subsidiariedade. Trata-se, no fundo, de facilitar a participação cívica nos processos de decisão a nível local e regional, mas também de proteger essas comunidades da compulsão uniformizadora do Estado centralizado, permitindo uma política de proximidade, de acordo com as particularidades de cada lugar.

Pese embora a sua tradição municipalista, Portugal continua a ser um dos Estados mais centralizados da Europa ocidental, face ao impasse em que a regionalização veio a cair. De resto, as áreas metropolitanas e as comunidades intermunicipais não substituem a regiões administrativas, porque funcionam como estruturas associativas dos municípios sem legitimação democrática direta e com um leque de competências limitado, como a prática tem demonstrado.

Finalmente, a experiência contemporânea do Irão, só para citar um exemplo, mostra os problemas que um Estado teocrático pode criar aos seus cidadãos, ao impor um código moral rígido com força de lei geral. Na verdade, a laicidade do Estado é um vetor importante da liberdade dos cidadãos e da possibilidade de inclusão social da diversidade pessoal e cultural.

Na data em que escrevo, celebra-se o Dia Internacional da Não-Violência, coincidente com o dia de nascimento do Mahatma Gandhi (2 de outubro). É, por isso, uma ocasião propícia para refletir e conversar sobre estes temas, tanto mais que o mundo volta a resvalar perigosamente pelos caminhos da crispação e da guerra.

 

Luís Filipe Guerra, juiz e membro do Centro Mundial de Estudos Humanistas

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