Chrys Chrystello
50 anos de abril em 2024, Timor em 1974
Crónica 523.
1. Crónica 523. 50 anos de abril em 2024
Pensei seriamente se devia escrever isto, antes do mais por estar na fase impossível de sobreviver, com sanidade, após a morte da minha mulher e companheira de 29 anos. Além do mais ela fazia as revisões dos meus textos e opinava sobre o seu conteúdo. Depois, ainda estou incrédulo pela cegueira dos dois principais partidos a catapultarem a extrema-direita nas recentes eleições regionais e nacionais. Por fim, lembrei-me de 3 ou 4 factos marcantes da minha vida que se sobrepõem ainda a tudo isto.
De 1967 a 1972 no TUP (Teatro Universitário do Porto) conheci e trabalhei (entre outros) com o Mário Viegas, Zeca Afonso, Mestre José Rodrigues (da terra da minha mãe, Alfândega da Fé) e comecei a ser politicamente ativo. O Mário leu publicamente um Poema meu de um livrinho em que o lápis azul (da censura) cortou mais de 70 páginas do meu primeiro de poesia (em 1972) Crónica do Quotidiano Inútil, a que se seguiram mais cinco volumes até aos 50 anos de vida literária em 2022.
Em 1973 passei quase seis meses como Aspirante a oficial-miliciano (subalterno do major Ernesto de Melo Antunes) no RAL-4 em Leiria e soube através dele que algo se cozinhava no seio das Forças Armadas…
Sobre isto, extraio do volume 5 de ChrónicAçores:
Longos passeios do Castelo - em frente ao quartel - ao rio Liz a falar e filosofar. Permaneci em Leiria até setº 1973, e dei-me bem com o Melo Antunes (mais tarde bem conhecido do povo português) com o qual tive longas conversas e passeios sobre a situação sociopolítica e económica do país, criando amizade profunda e lido alguns dos estudos da mudança que preparava para o futuro, e iriam ocorrer. Não sabíamos quando… ele dizia que era algo para daí a dois ou três anos (no pior cenário, cinco).
Falava-se de vida, de filosofia, de aspirações e sonhos. Felizmente vivi o suficiente para ver a maior parte desses sonhos concretizados antes do novo milénio.
Rezam as crónicas que sou moderadamente otimista há décadas, baseado no princípio de que as coisas podem sempre ser piores, mas também podem melhorar, e, normalmente, a vida convalesce connosco. Acredito piamente que a sorte se constrói com muito trabalho e esforço e creio que o destino não está previamente traçado. Porventura, estará delineado para a carneirada que não pensa nem se dá ao trabalho de agir. Para os restantes, bípedes pensantes, o destino é feito de altos e baixos que vamos construindo e destruindo ao longo das decisões que tomamos. Dito isto, nunca me arrependi de nenhuma, mesmo as que provaram serem um fracasso total, pois na data em que as tomei decerto me pareceram as melhores.
Posteriormente, tal como sempre tentei fazer, exerci o direito de autocrítica e autoavaliação psicológica das minhas ações e – quando o soube ou quando o pude – fiz as correções que entendi necessárias.
Nos meus anos mais jovens, entre os 17 e 23 (1967 a 1973), desde que entrei na Faculdade e comecei a ter um interesse ativo e prático na coisa pública e política a vida deixou de ter duas tonalidades (o branco e preto) e adquiriu centenas de tonalidades de cinzento.
Nessa época qualquer jovem vivia com dois dilemas (caso fosse um ser pensante e havia alguns naqueles tempos). Um, era a espada de Dâmocles da malfadada tropa (o exército colonial português que decepava vidas e esperanças dos jovens ao enviá-los para a guerra colonial que ninguém queria nem entendia), a outra era o facto de não pertencermos à Europa, nem ao mundo, na política do “orgulhosamente sós” a que a ditadura salazarenta se agarrava. Mas havia esperança, a guerra colonial acabaria, tal como a do Vietname e a democracia haveria de chegar, como chegou à Europa após a segunda grande guerra.
Mas jamais esquecerei o que era viver sem liberdade. Antes do 25 de abril (em Portugal) havia ma coisa chamada lápis azul, ou censura, que e cortou 70 páginas a um livrinho de poemas adolescentes que publiquei só com cerca de trinta páginas e isso jamais esqueço ou perdoo… O resto é história, o 25 de abril trouxe a liberdade de pensamento e de expressão e muita água correu sob as pontes mas, hoje, sou confrontado por uma sociedade mais desigual do que nunca, de falsa fluência consumista.
No que conseguíamos ler e ouvir queríamos a liberdade do Woodstock americano com música das rádios pirata britânicas, das manifs de estudantes de Paris em 68-69 (e posteriores), em vez de viver sob “brandos costumes, no jardim à beira-mar plantado” que me obrigaram a uma multa de 2$50 (dois escudos e cinquenta avos = 0,0125€) por andar descalço no acesso à praia …ou outra (creio que 250$00=1,25€) por não ter licença de porte de “arma” (neste caso, um isqueiro). Alguns colegas eram “bufos” (não só da PIDE) e ao denunciarem o meu uso de isqueiro sem licença ganhavam 50% da receita…
Hoje no outono (ou inverno) da vida, ainda tenho saudades de Timor, da Austrália, de Bragança. Do meu amor súbito (após 2005) e suicida pelo Faial, Pico e outras ilhas açorianas. Tão pronto, a realidade me confronta com a certeza de estar aqui preso e amarrado para sempre, por vontade própria. Dificilmente sairei deste buraco, bem verde e bonito é verdade. É bonito. E que mais? É bonito, mas tão deserto como o Saara.
Falta-me gente com quem dialogar a nível intelectual, falta-me um Melo Antunes com quem trocar sonhos e imagens do futuro melhor para o país. Falta-me uma tertúlia, um Cenáculo onde possa falar e ouvir, trocar sonhos e discutir opções de vida (nem mesmo os nossos Colóquios da Lusofonia são talhados para tal). Em tempos chegamos a ter um pequeno grupo que se juntava nos Moinhos de Porto Formoso que imitava tais tertúlias, depois morreu o Daniel de Sá, o Manuel Sá Couto e desapareceram uns tantos…
O meu idealismo poético irá morrer comigo. Sozinho, silente. Estes mutismos enormes, solilóquios, que ora partilho comigo mesmo, estão a tornar-me cada vez mais árido. A sensatez reitera que os silêncios não são de hoje. Vão sempre desaguar nas feridas por sarar. Cicatrizes por curar. Estigmas. Dentro e fora do SMO. Mas já fiz o último exorcismo, a última catarse em 2019 e esperava, finalmente, ser livre, se bem que envelhecido, a partir daí. Com cicatrizes mas sem estigmas, apenas lembranças, focando-me apenas nas boas e varrendo as más que tanto me consumiram.
E consegui-o até janeiro (2024) quando a minha companheira cúmplice se mudou para outra dimensão deixando-me só neste mundo que não entendo.
Escravo sim, mas nunca escravizado, disse, em tempos de desabafo, numa das múltiplas tentativas de catarse. Equacionava constantemente o que fizera, onde estivera, como procedera. Tentava descortinar melhores meios de proceder em situações semelhantes. Insistia na minha introspeção insana, mas terapêutica. Quiçá hedonista, destinada apenas a evitar repetir o sofrimento de outras eras.
Depois de o exército colonial me mandar para a Oceânia, foi o terror do 25 de abril em Timor (onde nunca chegou). Estive quase a ser deportado para Moçambique (com mais uns tantos) por ser progressista à frente do jornal local “A Voz de Timor”...
Infelizmente, os efémeros Governos Portugueses, no instável período que se seguiu à Revolução de abril, não se opuseram firmemente, como deviam, às ambições da Indonésia. Incapazes de avaliar ou entender as realidades culturais, económicas e políticas de Timor-Leste, limitaram-se a defender só o direito à autodeterminação. Apregoavam que o povo do território deve "escolher o seu destino, sem opor objeções à integração na Indonésia se essa for a sua vontade livremente expressa," cometendo um erro bem mais trágico do que se podia prever.
A Indonésia avançou com o plano de anexação, com o apoio da Austrália, a cumplicidade do mundo ocidental e dos EUA em particular, e uma muito ténue oposição de Lisboa. O primeiro passo é a desestabilização do território, para o qual o presidente Suharto dá 'luz verde' em outº 1974, na 'Operasi Komodo’ dos Generais Benny Murdani, Yoga Sugama, e Coronel Sugiyanto que incluía o recrutamento de agentes de Timor-Leste, propaganda falsa pelas Rádio Kupang e Rádio Atambua (na metade indonésia da ilha) disseminada pela agência noticiosa oficial ANTARA e reportagens alarmistas sobre a situação em Timor, além do aliciamento dos líderes políticos de Timor, com promessas e ofertas (mais tarde, pressões) e a radicalização dos partidos locais através de agentes indonésios infiltrados.
A segunda fase ('Operasi Komodo') no começo de 1975, inclui a preparação da invasão quando é já evidente que há uma rejeição quase total timorense do projeto integracionista. O General Benny Murdani é o principal arquiteto da invasão. Em 18 fevº 1975 um simulacro em Lampung, Sumatra, criava o cenário para a operação em Timor, mas o exercício foi um fracasso total e atrasou a invasão.
O delegado do M.F.A. em Timor, Major Metello parte em visita oficial a Portugal após dois meses de luta acérrima contra o Encarregado do Governo, Níveo Herdade. A situação nos escalões superiores da hierarquia era de confusão e tensão. A cúpula militar viu vários oficiais desterrados para fora de Timor por, alegadamente, terem tomado parte num abortado mini-movimento para depor o Encarregado do Governo. Dentre eles um Tenente-coronel, Capitães, um Juiz do Tribunal e oficiais milicianos, 25 pessoas. Fora enorme esta depuração em tão reduzida comunidade. Eu saí deste lote de deportados após escrever cartas ao Major Melo Antunes, com quem trabalhara anteriormente, a dar-lhe conta da situação que se vivia em Timor. As cartas indicavam que, além das que seriam enviadas pelo correio militar, sujeitas a censura, iria enviar cópias por meios seguros através da Austrália e da Indonésia. Assim fiz ao confiar cópias a “hippies” que faziam de Díli o trampolim para chegarem ao último paraíso na terra, que Bali era então. Essas cartas cheias de descrições sobre tudo o que se passava (e provavelmente não era conhecido em Lisboa), podem ter sido a razão de eu não ter sido incluído naquele grupo, como queria Níveo Herdade, de acordo com documento secreto posteriormente revelado na Comissão de Descolonização.
O documento da Comissão de Descolonização (que desconheci durante mais de 25 anos), chegou à minha posse já no séc. XXI, e no qual constato que fui, injustamente, vilipendiado pelo Ten-Cor. Níveo Herdade em 27/9/1976 na Comissão de Análise e Esclarecimento do Processo de Descolonização de Timor, da Presidência do Conselho de Ministros (Relatórios da Descolonização de Timor: Relatório da Comissão de Análise e Esclarecimento do Processo de Descolonização de Timor.)
O material foi-me gentilmente enviado pelo General José Alberto Morais da Silva (1941-2014), ex-chefe do Estado-Maior da Força Aérea. Ligado ao "grupo dos nove", exerceu o cargo até 9 janº 1977, tendo, no seu mandato, enfrentado o golpe militar do 25 novº 1975. Em 2000, escreveu com o coronel Manuel (Amaro) Bernardo, o livro Timor, abandono e tragédia, ed. Prefácio, no qual usou extratos do meu livro Timor-Leste o dossier secreto 1973-1975.
O meu 25 de abril descrevi-o então assim (e Ramos Horta confirmou-o no Expresso em dezº 2015):
Quando a Revolução dos Cravos aconteceu houve quem recebesse a notícia via telefone. Depois, era uma questão de perder tempo na rádio de ondas curtas. Era hora de jantar e eu estava de Oficial (Ajudante) de Dia no Quartel-general. O idoso Oficial de Dia já estava há muito a olhar para o umbigo, depois da sua rodada habitual (vinho “Periquita” ou outro). Toni Belo, operador da Telecom, Rádio Marconi, ligou para o Quartel-General a dizer-me que ia ter uma chamada telefónica uma hora depois. Chamei o condutor de serviço, mandei-o ligar o Jeep e passados minutos estava em Díli, ansiosamente esperando 'a chamada'. Pressenti tratar-se de algo muito importante. Acordara com a família que só haveria telefonemas em emergências. Há muito que confirmara que toda a correspondência era sujeita a censura prévia e as chamadas telefónicas gravadas. Então, ouvi quase sem acreditar: Era a REVOLUÇÃO. Embora Timor não dispusesse de telex, desde o ano anterior dispunha de contactos radiotelefónicos com o mundo exterior. Sem perder tempo, pedi ao condutor para passar por casa nos apartamentos da SOTA (Largo de Lecidere), onde comunico aos colegas de habitação (o cirurgião Carlos Prata Dias da Costa e o Eng.º Proença de Oliveira, subchefe dos Serviços de Agricultura) o que ouvira. Pedi-lhes o máximo sigilo, ligo o rádio em ondas curtas e regresso ao Q.G. (Quartel-General) onde anoto que nada havia a assinalar da 'ronda' pela cidade. Durante o resto da noite, escuto avidamente os noticiários da BBC, Rádio Austrália e uma série de emissoras (ouvi a Rádio Paquistão, pela primeira vez). Na manhã seguinte, o camarada Freitas, que me ia render, pergunta se havia novidades de Portugal. Sem confiar em ninguém, depois do que se passara com a controvérsia no jornal, respondi-lhe: "Nada, que esperavas?" Os dias que se seguem são caóticos, com todos os rumores a circular e um generalizado sentimento de incredulidade pelos acontecimentos. Os dias passam, e o oportunismo camaleónico é avassalador. Do dia para a noite todos são revolucionários e democratas de nascença. A demissão do Governador Aldeia demora. Torna-se necessária depois do discurso em que, de forma obstinada, se opunha ao novo regime político. Começam a tomar vulto os rumores de que o capitão-tenente Leiria Pinto, Comandante da Defesa Naval, é o nomeado pela Junta. Estes boatos confundem muita gente, pois Leiria Pinto era considerado como tendo ideias extremamente conservadoras. Ao mesmo tempo, há quem afirme que o Chefe de Estado-Maior, Major Arnao Metello, sombrio oficial de carreira, é o homem de confiança da Junta de Salvação Nacional. Metello é conhecido pela sua falta de decisão e falta de garra em tudo o que se reportava à ação colonial. A oposição à continuação do coronel Aldeia no poder cresce de dia para dia. Ameaça tornar-se numa bola de neve, com os militares definitivamente divididos entre os progressistas – maioria de oficiais milicianos, furriéis e sargentos - e a velha guarda dos oficiais de carreira.
Entretanto em Portugal, o povo anda excitado com a liberdade acabada de aprender. Sobem os barómetros da esperança depois de 48 anos de obscurantismo.
A situação começa a clarificar-se em maio, embora nem todos os decretos aprovados em Lisboa se tornem extensivos a Díli. O regime caiu porque estava tão podre que estava incapacitado de suster qualquer ataque. A celebrada vitória vem estampada em todos os jornais e revistas que chegam a Timor, mas de uma certa forma, parece estar a anos-luz. Depois do 25 de abril, comecei a publicar artigos que o Comando Militar e, em especial o CEM (Chefe do Estado-Maior Arnao Metello) queriam evitar e me mandava chamar quase todas as manhãs no velho Volkswagen do Estado-Maior. Nessa rotina (prolongou-se por bastante tempo e trouxe consequências ao meu serviço militar) lá tinha de explicar porque publicara artigos censurados e considerado material proibido. Uma verdadeira caça ou o jogo do gato e do rato.
Ramos Horta viu assim o 25 de abril segundo entrevista dada ao Expresso em 28.11.2015:
Por tudo isto o que resta fazer 50 anos depois? Quase tudo, pois já só temos a liberdade de expressão e ruma-se rapidamente para o revivalismo do 24 de abril.
Não esqueço sons que associarei sempre ao 25 de abril e podem ouvir em https://youtu.be/XTSnHxB_z6U
relembro as danças dos grupos Timor Furak e Le Ziaval no 26º colóquio na EBI Maia https://youtu.be/P1tZeYgTfgg
e no Teatro Ribeiragrandense https://www.sapo.pt/video/trpZJ6Aj1U2sNzVnDJzm
Ou ainda estes Vídeos da minha memória de Timor
https://youtu.be/v2-wg8RlVig 10.38 2018
https://youtu.be/lyuOl7rCsPs?list=PLwjUyRyOUwOKRIA8XUWpVdMb8qRyjwlPB 18.28 2018
https://youtu.be/07aSPz-KmoQ 6.46 2017
https://youtu.be/GU_PzsOoMRE 11.08 2017
https://youtu.be/ccYFO2HL-KY 8.45 2016
https://youtu.be/fWq_oma1-VA 8.15 2016
https://youtu.be/jAl9w97nC4c 17.30 2016
https://youtu.be/BT3T3xoStrw 8.23 2016
https://youtu.be/pIGOK7gql34 1.47.56 2014
https://youtu.be/sYG4loijyeo 49.19 2021
Poemas de abril e de Timor
574. soletras autonomia (lomba da maia, abr 2013)
ilhas de névoas e gaze
de novelões e conteiras
do verde e do azul
ó gente de negro basalto
quem canta a tua gesta?
terra de maroiços
cais de rola-pipas
mar imenso abraseado
lacerado por vulcões
ilhas de bardos e músicos
republicanos presidentes
poetas, pintores e artistas
antero, nemésio e natália
quem te liberta das grilhetas
do passado feudal
da escravatura da fé
do atavismo ancestral?
soletras autonomia
gaguejas liberdade
titubeias emancipação
com laivos de insubmissão
como a irmã galiza
cicias um 25 de abril
que tarda em chegar________________________________________
660. demo-cracia, ago 2014
tanto mar, tanto sal
tanta dor em portugal
primeiro foi-se o império
depois finou-se a ditadura
hoje agoniza a democracia
sujeita à banca e à usura
e neste recanto da ilha do arcanjo
sonha-se poesia e utopia
como se ainda houvesse esperança
ou o político se vestisse de anjo
por entre crimes e desgovernação
tanto mar, tanto sal
tanta dor em Portugal
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469.II DIA DE ENGANOS
nesse dia acordou irritado
logo por azar estremunhado
notaria a seu lado
a mulher
morta há dez anos
os ossos espalhados pela cama
pressupunham aqui e além um certo descuido
mas que diabo!
voltou-se para a janela
tentando adormecer uma vez mais
invariavelmente o fazia em dias como aquele
foi então
atiraram a bola à vidraça
o quarto ficou estrelado
mil sóis recortavam-se no ladrilhado
esforçou-se por manter a calma
ocultou a face no travesseiro
agarrou a almofada
freneticamente
num esgar sensual
ao longe tiniam campainhas
não havia dúvidas
iria ser um dia mau
decidiu-se a folhear o matutino
recusou-se a acreditar
limpou os óculos
estava lá
sem engano possível
em título de caixa alta
em editoriais se consagrava
o sonho supremo da humanidade
por decreto presidencial
dum senhor que ninguém elegera
ia ser promulgada e publicada
no diário da governação
com força institucional
A DEMOCRACIA
em termos mui solenes
o governo advertia
dentro de 24 horas
em cerimónia apropriada
nascia a democracia
e zás! nem quis ligar a televisão
quieto e calado tresleu
era demais!
violento choque!
democraticamente
sem se dar conta
caiu para o lado com um baque surdo
morreu na cama
e em jejum
democrata de nascença.
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577. aviso à navegação, 25 abril 2013
aos saudosistas, salazarentos
e outros democratas
de geração instantânea
25 de abril é uma data que respeito,
devolveu-me a liberdade de expressão
que não tinha ao nascer
e só porque gente houve
a trair e abusar desse ideal
não vou deixar de acreditar nele...
continuo sonhador, poeta e utópico...
na minha mente e nos meus atos
será abril sempre
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Enquanto dormias a nova escravatura chegou, nov 2013
nenhum de nós é livre
enquanto ao teu lado
houver fome
miséria
desemprego
hoje são os outros
amanhã serás tu
passaram 40 anos
nenhum de nós é livre
enquanto abril não se cumprir
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438.3 habito uma ilha, dili, abr. 4, 1974
oito séculos
história ao desbarato
missionante império
memórias de povo
sem novas gestas
colonizante cansaço
precoce esquecimento
(multi)raciais sociedades
para colorir
(pluri)continentais
para exportar
e um discurso mais
prisões
medos
silêncios
quarenta-e-oito-invernos
e os infernos?
- HABITO UMA ILHA –
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452. memórias. (díli, abril 1975)
ave louca
sinusoide voo
rias-te
nem sabias de quê
era já o fumo
olhos e mãos, baça voz
gestos nunca antes inventados
sabíamos do tempo
a imponderabilidade
a curva obscena dos corpos
na posse do mundo
estávamos e éramos
coloridos e diáfanos
queimávamos identidades
alguém cantarolava
palavras
desconexas
inúteis
carícias
premeditadamente esquecidas
ela se levantou
e a víamos como se não fosse
isto é
criada no instante mesmo
hesitante
avançando pela janela
ninguém a abrira
seria talvez noite
transcendental o país
bebedeiras de amor
roteiros estelares
no suor do regresso
como se nunca partiras
no sorriso distante, nos teus lábios
cresceram da criança os olhos
encheu-se a sala
frágeis gestos
alguém ousara!
na rua um escape
no silêncio do grito
a regra é saber que horas são
ou o medo
a vertigem
a regra do pavor
o voo de ficar
céleres que nem imagens
falam de nós
no teto branco nu
ou somos
desirmanados
no frémito que nos invade
a resposta recusada
texto ou resumo
a vida violada.
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547. eleições sem lições em timor, 2012
dili 23 setembro 1973
cheguei hoje a timor português
a vinda marcará a minha vida para sempre
sem o saber nunca mais nada será igual
o futuro começa hoje e aqui
entrei no tempo da ditadura
sairei na democracia adiada
na bagagem guardo sabores,
imagens e odores
sonhos de pátria e amores
divórcios e outras dores
cheguei sem bandeiras nem causas
parti rebelde revolucionário
tinha uma voz e usei-a
tinha pena e escrevi sem parar
pari mais livros que filhos
para bi-beres e mauberes
48 anos de longo inverno da ditadura
24 de luta independentista
agora que a lois vai cheia
e não se passa na seissal
já maromác se apaziguou
crescem os lafaek no areal
perdida a riqueza do ai-tassi
gorada a saga do café
resta o ouro negro
para encher bolsos corruptos
sem matar a fome ao timor
perdido nas montanhas
sem luz, água ou telefone
repetindo gestos seculares
mascando sempre mascando
o placebo de cal e harecan
mas com direito a voto
para escolher quem o vai explorar
sob a capa diáfana da lei e ordem
do cristianismo animista
oprimido sim mas enfim livre.
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577. aviso à navegação, 25 abril 2013
aos saudosistas, salazarentos
e outros democratas
de geração instantânea
nascidos após o 25/4/74
25 de abril é uma data que respeito,
devolveu-me a liberdade de expressão
que não tinha ao nascer
nem no primeiro quartel de vida.
sou sonhador, poeta e utópico...
e só porque homens e mulheres
traíram e abusaram esse ideal
não vou deixar de acreditar nele...
na minha mente e nos meus atos
será abril sempre
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704. 25 abril sempre, até quando, lomba da maia, 25.4.18
a mulher doente
hoje não cumprirei a tradição
nos moinhos de porto formoso
não erguerei o meu cravo vermelho
pelo abril que imaginei
a saúde de ambos necessita terapia
não há medicina para estas maleitas
há 44 anos que acredito
sem arrependimentos
hoje incréu interrogo
quem matou os sonhos antigos
para mim será abril sempre
na mente e nos desejos
da liberdade, igualdade, fraternidade
falta nascer o homem novo
a sociedade nova
o mundo remoçado
que dê vida a este desiderato
espero o renascer das utopias
neste outono de vida
um 25 de abril sempre
mas com poesia
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550. timor nas alturas /2012
queria subir ao tatamailau
pairar sobre as nuvens
das guerras, do ódio, das tribos
falar a língua franca
para todos os timores
queria subir ao matebian
ouvir o choro dos mortos
carpir os heróis esquecidos
queria subir ao cailaco e ao railaco
consolar as vítimas de liquiçá
beber o café de ermera
reconstruir o picadeiro em bobonaro
tomar banho no marobo
ir à missa no suai
buscar as joias da rainha de covalima
passar a fronteira e voltar
chorar todos os conhecidos e os outros
e quando as lágrimas secassem
regressaria à minha palapa imaginária
à mulher mais que inventada
oferecer-lhe um pente de moedas de prata
percorrer as suas ribeiras e vales
sussurrar por entre as folhas do arvoredo
navegar nos seus beiros
rumar ao ataúro e ao jaco
desfrutar a paz e as belezas ancestrais
ouvir os tokés enquanto as baratas aladas voam
os insetos projetados contra as janelas
atraídos pela luz do petromax
a infância e a juventude são como uma bebedeira
todos se lembram menos tu
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445. para que não digam, 25 setº 1974
ao dr buceta martins, fascista dos antigos
na direita o fáscio, na esquerda o chicote
o sorriso no gatilho, mártir da democracia)
para que não digam
a mordaça acabou
a voz é livre
o futuro é novo
pintaremos o silêncio
que nos impõem
calaremos os sonhos
dos jornais que lemos.
sabemos nossa a vitória final ou talvez não
cântico da luta a palavra ressuscitada
aqui Timor aqui díli
o fáscio perene fidedigno
insuspeito nos bastidores
da obsoleta ordem nova
este mundo sem denúncia
porque o medo
sem progresso
porque o interesse
sem abril
porque os cravos murcham
nas estrelas da rosa-cruz
o trabalho é um dever divino
de obediência
perdida no espaço
já que tempo nunca teve
esta a terra dos parasitas
inaptos
corruptos
exilados das grandes batalhas
aqui o poder discricionário
o absentismo forçado
a passiva repressão
uma-a-uma todas as vozes silenciadas
o charco estagnou
idólatras do verde rubro
simbolistas de fé nenhuma
tiranos cujos ecos nos perseguem
mijai-vos de indignação
babai-vos de orgulho insalubre
a grande farsa acabará um dia
sem a razão
única e arbitrária
sufocados pelos gritos de piedade
afundar-vos-emos na merda que vos sustenta
e alimenta
vingar-nos-emos com o riso aberto sem incriminações
aqui Timor aqui díli a voz colonial da oceânia.________________________________________
442. prazeres sem orgasmo (díli, abril 25, 1974)
pragmática palavra o som primeiro
hierático sorriso impresso
das crianças suburbanas subalterna vida
nas ruínas de lata o bairro
obscura idade do gesto habitante incómodo
ódios ignotos do ócio
ilhas à deriva plasmando a cidade
cerca da fome a fadiga desnuda
dos olhos a sombra
- este o uterino vértice - ex/ato
heréticas noites de silêncio ex/voto
ignaras letras excitadas o infólio
tamanho normal de povo no estertor
- É URGENTE REINVENTAR A CURVATURA OBSCENA DA GRAVIDEZ
PREENCHER DE FORMAS O VAZIO CORPO (DES)ESPERADO -
a mulher vulgar objeto
a televisiva fonia de anestesiar
amorfa consciência o pesadelo
cercearam irredutível ascensão
o plano antigo inclinado em queda abrupta
h2 = a2+b2 a razão inversa
do quadrado da hipotenusa a concêntrica marcha
relógio imperfeito da geração perdida
ao limiar do ser o haver
cerco do universal enfado indizíveis cansaços
- tranquidolente marasmo mais um dia
na nudez proverbial deste povo
construtor ingénuo
de prazeres sem orgasmo ou de orgasmo sem prazer? ________________________________________
515. a nau sem escorbuto / 2011
arribou nesta praia deserta
a nau sem escorbuto
sem mastro nem pendão
sem carga nem marinhagem
sem especiarias do oriente
nem arroz do sião ou malaca
sem pérolas de ormuz
nem diamantes da índia
sem cavalos das arábias
nem marfim das áfricas
fôra de cochim a meca
de ternate a timor
sem compradores
nem lusitanos feitores
nesta açoriana praia deserta
longe do mar eritreu
há mouros e judeus conversos
cristãos por batizar
os senhores dos açores
ocupam lugares de proa
a barlavento das gentes
não vieram de calecute
nem estiveram em cipango
não cuidam da pimenta do reino
da noz-moscada, do cravo-da-índia
do açafrão, anis, gengibre e canela
não foram a banda, ceilão ou malucas
os senhores dos açores,
que não é terra de gentios
chamam-lhe sua e de mais ninguém
como samorim a regem
feitos marajás em palácios
ofertam bugigangas aos nativos
promessas vãs e eleitorais
sentado na ameia
frente à seteira
em castelo sem pendão
envio migas de letras
a todos sem literário pão
crónicas avulsas de vidas vividas
pecados sem perdão
e o povo sem saber da fome
do frio que aí vem
das vacas que se foram
do leite que não mungiram
dos campos que não araram
das colheitas que não comeram
feliz vota nos que prometem
sempre a mesma solução
lá fora há guerras sem pátrias
mutilados e estropiados
cá já temos sem-abrigo
drogaditos e malfeitores
assaltantes, meliantes
económicos dissabores
da troica que tudo leva
e cobra dívidas que herdamos
de tantos ditos senhores
não há santos que nos valham
nem procissões e andores
preces e velas acesas
romeiros de todas as dores
somos um povo infeliz e abúlico
sem sonhos nem destemores
vergados ao duro peso
de vis especuladores
da história magnânima nem sombras restam
nem bardos nem cantores
nem escribas dedicados
o povo sofrendo medos
erros grosseiros
enganos ledos
sem naus nem caravelas
sem espadas nem aduelas
sem especiarias nem língua franca
cantando fados a tétis com paixão
com futebol e telenovelas
e fé sem outra afeição
o povo escravo de novo
sofre consternado
às dívidas acorrentado
à mingua de dízimos e outros enfados
sem contar os créditos mal parados
come demagogia e paga iliteracia
santa liberdade e democracia
chora lágrimas de crocodilo
lendo jornais desportivos
com as letras aprendidas
nas novas oportunidades
o povo sofrendo fomes e enfermidades
vendia os anéis e comia os dedos
emigrava quando podia
queixava-se da sorte caipora
temia do governo as novidades
a geração rasca a parva passara
timidamente na crise despontara
bancos enriqueciam na austeridade
à custa da plebe e do suor já suado
de brandos costumes acostumado
não descera às ruas este povo
faltava-lhe força e inteligência
nem era gleba de novo
antes novos ricos da indigência
ancorada a nau fmi de novos reis
em terra de pagãos e infiéis
não daria berloques aos nativos
apenas a chibata e o chicote
as grilhetas de trabalhos cativos
sem abrigo nem culote
e um poeta solitário
no alto do seu castelo
gritava a bom gritar
mas não o ouviam as massas
sem perder tempo para se educar
e acreditavam nos seus donos
compradores de votos
com promessas a acenar
o jardim à beira-mar plantado
há muito inculto e estiolado
ia fenecendo devagar
sem gente para o cuidar
e dos vindouros muitos virão
dizer que o poeta pressagiava
o fim desta bela nação.________________________________________
573. fados e sambas (lomba da maia, abr 2013)
ser ilhéu é um fado triste
entoado como um samba alegre
cantigas ao desafio
cantorias desgarradas
os corpos e as palavras
pintam realidades inesperadas
todos ficam todos partem
em dia de são vapor
tão longe sempre perto
em calafonas e canadás
ser ilhéu é um fado triste
entoado como um samba alegre
manta remendada de nove cores
tapete voador da saudade
sementes da memória
nas paredes do tempo
rasgando o silêncio
mundos mágicos sem chave
e eu ilhéu de abril
filho de muitas ilhas
choro este fado________________________________________
594. autonomias nominais junho 2013
“para saberes quem te governa descobre quem não podes criticar”
voltaire
hoje acordei sem voz
sem mãos,
sem pés
sem coração.
habito nove ilhas de mil cores
arquipélago de mil autores
num fiasco de autonomia
pobreza sem alegria
na independência poucos confiam
em busca de subvenções porfiam
melhor é ficar mudo e quedo
viver dos subsídios esmoleres
submissos e acomodados
pobres despreocupados
servos enfeudados
ingénuos explorados
na eterna espera de godot
de um mandela que não nasceu
assim se explicam os açores
ilhas de mil e uma dores
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627.1. à Galiza (moinhos, agosto 2013)
imagino a galiza
de cravo e bandeira na mão
gritando a plenos pulmões
que a liberdade é merecida
que a rua é dos poetas
que o 25 de abril não é de todos
mas será sempre para todos
mesmo para aqueles que o negam
imagino a galiza
de manifesto e megafone na mão
declamando a poesia da alforria
das conquistas irreversíveis
quando os esbirros vierem
feitos controladores do pensar
sei que ela estará lá
e abrirá o peito às balas
e o sangue que jorrar
será poema e arma
e o corpo desvanecido
será escudo e estandarte
para que a liberdade não morra
nem haja estertor do povo
com ela será 25 de abril sempre
que ninguém nos cala
e a voz dos poetas
troa mais que a da bala
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475. NASCEM OS DIAS
suburbanamente vives
renasces quotidianamente
no sol que te alimenta
te transporta
hábitos comprimidos no sono
cheiras a cama
correndo te perdes
te cansas
nascem os dias na cidade
em cada rua
esquina
no matraquear lento dos minutos
nos acotovelámos vorazes
por entre a sandes e o copo de leite
a grande corrida no relógio das veias
e já somos o rebanho
e o cansaço
triturados no suor do trabalho
na lufa do jantar
um marido às prestações
os filhos endormentes
a televisão deserta
o sono
cansados os corpos
desconhecidos repousam
até um dia
amor
e chamar-se-à liberdade
nos dormitórios da cidade
o silêncio nos embala
sem voz que se erga
nos sonhos
que nos proíbem
sem que a desfraldemos
no edifício dos corpos
a alegria das bandeiras
neste país dos cravos
as lágrimas vermelhas do seu sangue.
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738 imarcescível 22.5.2022
imarcescível quis ser
escrevi livros, plantei árvores e tive filhos
lavrei no granito natal
os meus petróglifos de nazca
em timor dissipei-me na areia branca
em bali fui hippie em kuta beach
em macau fiz tai chi no lou lim iok
na austrália nadei em rottnest island
em bragança renasci transmontano
e no basalto açoriano gravei
imperecíveis poemas
este o improvável epitáfio
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739. outro epitáfio 25.6.2022
ser velho é isto
olhar para a parede que já foi branca
contar os traços quase a atingir 26645
já pouco espaço resta para mais traços
cada um deles um dia
uma alegria mil tristezas
sonhos que se esfumaram
sonhos nunca sonhados
que se concretizaram
sonhos recorrentes
nunca atingidos
subidas aos sete céus
descidas a mil infernos
a certeza inabalável
de ter feito a diferença
no carneirismo cinzento
a ovelha negra
no meio do rebanho
sem medo
dos cães pastores
de seus dentes ameaçadores
sem temor da chibata do pastor
e para epitáfio
um “smile” gigantesco
de desdém, de zombaria________________________________________
Chrys Chrystello, Jornalista, Membro Honorário Vitalício nº 297713 [Australian Journalists' Association - MEEA]
Diário de Trás-os-Montes (2005)- Diário dos Açores (desde 2018) - Tribuna das Ilhas (2019) –
Jornal LusoPress, Québec, Canadá (2020) - Jornal do Pico (2021)