Manuel Igreja

Manuel Igreja

A Cidade

Desde que desceu das árvores e deixou de andar “ao Deus-dará” ´ na cata de animais e de frutos silvestre para a sua alimentação, a humanidade foi-se organizando à medida do possível e como sabia.

Fixou-se essencialmente por via dos mortos que eram sepultados e cuja memória urgia respeitar e por causa do trigo a cultivar enquanto alimento de primeira apanha e melhor serventia, mas não vamos agora meter aqui a foice na seara, porque é alheia ao malhar em que vos pretendo incluir.

Primeiros entre os primeiros de então, os gregos começaram a organizar as suas urbes, as suas cidades enquanto espaço físico e mental de identidade, de acomodação e de organização.

Viram desde logo que se impunha que a Polis, que é como quem diz, a cidade, tinha e tem de ter um largo para onde todos convergiam e onde tudo acontecia. O templo para a devida espiritualidade, os edifícios do poder político para a necessária governabilidade e mais tudo o resto inclusivamente para dois dedos de conversa sobre tudo e mais alguma coisa, mais não fosse para a má-língua. Digo eu.

Souberam então que uma cidade é muito mais que um conjunto mais ou menos alargado de ruas, de edifícios e de gente a passear, a entrar e a sair. Tiveram a noção que o chão em que germina e se fortalece o sentido de pertença, tem essencialmente a ver com o fazer parte da Pólis, o sentir as coisas dela como de cada qual, e que para se estar ao par das coisas feitas ou a fazer, se impõe o convívio e a troca de ideias e de palavras em conversas ora fiadas ora pensadas.

Desde então, passou mais tempo antes do início da nossa era do que depois de Cristo para cá, mas nós de hoje- em- dia tendo a mania que sabemos muitas coisas ou mesmo tudo, adulteramos a essência das nossas cidades. Sentados num banco de jardim e olhando para as nossas, as de Portugal de tamanho para cima do médio, facilmente constatamos que cada uma é um alargado conjunto de edifícios disponibilizados para os outros, para quem não é da cidade.

Sendo Portugal uma enorme estrutura bicéfala, um animal com duas cabeças enormes (Lisboa e Porto) e um resto de corpo que vai mirrando, facilmente se conclui sem que seja necessário ser-se doutor na matéria, que por inoperância, por ganância, por ignorância e por desinteligência, se foi e se está a perder o sentimento de cidadania em relação à cidade e consequente à nação.

Devido à urgente necessidade de dinheiro por falta de um eficaz e verdadeiro tecido produtivo, abrimos a pernas, pedinchamos investimentos sem ligar a origens nem a procedimentos e vendemos ao desbarato, sem sensibilidade, sem o devido senso, sem olhar para o futuro e virando a cara ao sofrimento causado a muita gente desprotegida que muito já deu à vida.

As nossas cidades perderam a alma que lhes foi vendida ao diabo a troco de pratos de lentilhas reluzentes, mas pouco transparentes. Os residentes, os cidadãos que as construíam e sentiam, foram expulsos para os esconsos arrabaldes onde habitam quotidianos adiados e sonhos por acontecer e cada vez mais dados como perdidos em florestas onde medra o azedume e a frustração feita costume.

Cada vez mais existem portugueses que são de lado nenhum. Cada vez mais sentimos que construímos as cidades para os outros, que muito do que existe neste pequeno paraíso onde só falta dinheiro, não está ao alcance do nosso usufruto e que vamos sendo estranhos na nossa própria terra. Servir é o nosso fado. Ou antes, querem que seja.

Com amargura e com uma ainda leve sombra no olhar neste país de muito sol, após meio século de democracia, sinto que Portugal se tornou num país prostituto ao dispor de quem tenha dinheiro para comprar o que ele tem de melhor neste presente em que se hipoteca o futuro.

Destruímos os Largos. Os gregos da Antiguidade Clássica que nos perdoem.



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