Manuel Igreja
A fartura faz o gado galego
Diziam os mais antigos da minha aldeia, nos meus tempos de menino e moço, que a fartura faz o gado galego. No seu imenso saber de experiência feito, facilmente transportavam aquilo que viam na natureza, que se lhes desenrolava em frente dos olhos, para o que notavam nas atitudes humanas, nem sempre humanas atitudes, pois o cruel sempre andou a par com as sublimes atitudes de compreensão e solidariedade.
Notavam eles que, por exemplo, e indo ao rego na lavra para não me desviar, quando um conjunto de ovelhas pastava num local com escassos recursos de mastigar, comia tudo, desde silvas a ervas, aparentemente, menos apetitosas. Deixavam o terreno mais limpo que rosto de homem acabado de escanhoar.
No entanto, quando o solo disponibilizava comida farta e saborosa, faziam-se esquisitas e lambiscavam. Assumiam quase um ar de desdém, assim como quem não está para se chatear. Era mesmo quando se entretinham a enguedelhar umas com as outras.
Criativas, como só elas, nesse tempo com tempo para tudo e muito mais, deram por si, sem saber como, a aplicar este modo de dizer a certos comportamentos dentro da comunidade. Aplicaram outros a cada circunstância, mas neste em concreto, disseram-no sempre que se deparavam com alguém que, farto de teres e de haveres, perdia a humildade e a noção do efetivamente importante. Pessoas que se não valorizavam e não valorizam as conquistas individuais e coletivas.
Vem isto a propósito dos nossos tempos, dos nossos quotidianos e daquilo que surge na espuma dos dias. Esta nossa sociedade do bem-estar, na dita civilização ocidental, que está de se não recomendar, apesar de ainda ser a mais justa e a mais equilibrada, apesar de todos os defeitos com que nela nos deparamos, com o devido respeito para as outras que nos acompanham no ocupar, do globo terreste, um mero pontinho no universo.
Resumidamente, e para não maçar muito as vistas de vossas senhorias que isto leem, diria que, com as dinâmicas criadas na reconstrução no pós-guerra, a segunda mundial, conseguimos alcançar um patamar nunca alcançado na qualidade de vida. O amanhã deixou tão inseguro e a mesa posta passou a ter rotina. Obviamente que não para todos, mais para uns que para outros, mas é facto.
Tenho para mim, pois então, que a fartura nos fez galegos. Fez surgir novas modas e novas preocupações na procura de opiniões e de convicções, frequentemente, com as prioridades trocadas e fora de importância e contexto. Como se o mundo não estivesse a caminhar para o precipício, como se a fome não campeasse em boa parte dele e para milhões de seres humanos, como se a insanidade não afetasse certos e poderosos líderes políticos e económicos, como se a fronteira da ética e do imoral não estivesse esbatida, como se a mentira estivesse a deixar de o ser por falta de contraponto da verdade, os vanguardistas de agora dedicam-se a temas sem nexo, na sua imensa arrogância intelectual.
Supostos herdeiros culturais daqueles que, há meio século, lutaram para mudar o mundo, para que ele fosse melhor e mais justo, cristalizaram pensamentos e esforçam-se para condicionar o pensamento dos outros e mais o seus modos de viver com toda a veemência e com uma intolerância que quase se assemelha à que grassava na época em que se acendiam fogueiras para se queimarem livros e ideias.
Gastam as energias a lutar para que se derrubem estátuas, para que se alterem os escritos e as figuras em algumas das mais elevadas obras de arte, com afinco e sem tino questionam a ordem natural de certas coisas, só lhes faltando, porque ainda se não lembraram, de se meterem com Noé por causa do modo como ele aconchegou os animais na arca aquando do dilúvio.
Nada tarda, vão exigir que se ponham as pirâmides do Egito de “pernas para o ar” para se averiguar o que está na base. Pode ser então que concluam que foram construídas com trabalho escravo e que isso se teve como normal por aqueles desalmados.
Enquanto isto, os estupores demagogos, aproveitam para levar a manada diretamente para o redil construído e vigiado no interior do seu covil.