Fernando Campos Gouveia

Fernando Campos Gouveia

A grande barrela!

Com a aproximação das eleições para o Parlamento Europeu, este ano marcadas pela enorme incerteza gerada pelo processo do Brexit, esperar-se-ia que os partidos concorrentes trouxessem para a praça pública os grandes problemas que, no imediato e a médio e longo prazo, se colocam à União Europeia.

Em vez disso, o que se constata é um alheamento escandaloso em relação ao futuro da Europa, como se fosse um assunto que não nos diz respeito e que se resolverá automaticamente nas negociações  a que se costuma chamar a burocracia de Bruxelas.

É verdade que a União Europeia sempre teve as costas largas para arcar com as incapacidades dos governos nacionais, para além de sofrer das suas próprias deficiências. Sejamos claros: A União Europeia cumpriu com um elevado nível de sucesso as tarefas que primeiramente lhe foram atribuídas através das Comunidades Europeias: a construção de um espaço de paz, a edificação de uma união aduaneira e de um mercado único. A par destes sucessos, houve ainda a capacidade para avanços significativos em matéria de livre circulação de pessoas, com a criação do espaço Schengen, para a instituição da união monetária e do sistema europeu de bancos centrais, para a criação de uma política externa e de segurança comum, para a instituição da cooperação judiciária e para a harmonização de legislações em diversas matérias, apesar de a regra da decisão por unanimidade que ainda vigora noutras áreas de primeira importância impossibilitar avanços necessários para dar coerência à União. E há que lembrar que as decisões da União Europeia são tomadas fundamentalmente pelo Conselho da União - em certos casos em decisão conjunta com o Parlamento Europeu - composto pelos representantes dos governos nacionais, e as grandes deliberações estratégicas pelo Conselho Europeu, composto dos chefes de Estado e de governo nacionais. Não pode, por conseguinte, imputar-se à chamada burocracia de Bruxelas o que é da responsabilidade dos governos dos Estados Membros.

As dificuldades que se prevêem com a saída do Reino Unido deveriam impor nesta campanha a discussão pública de aspetos fundamentais que se colocam ao futuro e à configuração da União, à adoção de estratégias novas, designadamente em matéria de política estrangeira e de defesa comum e à necessária modificação da regra das decisões por unanimidade, em que, por exemplo, e sem prejuízo do respeito que ele merece, um Estado Membro com meio milhão de nacionais pode vetar uma decisão que inviabiliza o aprofundamento de algumas políticas necessárias que afetam quinhentos milhões de europeus, designadamente no campo da fiscalidade.

Em vez disso, a preocupação que parece prevalecer nos governos nacionais face ao Brexit é a da situação de cidadãos nacionais residentes no Reino Unido e de cidadãos do Reino Unido residentes nos diversos Estados Membros e, vá lá, as consequências sobre os fluxos do comércio com o Reino Unido. Ora, isto é muito pouco, e evidencia uma menorização das relações dentro da União que, no entanto, condicionam em grande medida a nossa vida quotidiana, as nossas opções políticas e, finalmente, o nosso futuro.

Em Portugal, em concreto, aquilo a que vimos assistindo é a grande barrela de um problema clássico que, em ocasiões propícias, surge com extraordinária virulência: a dos conflitos de interesses dos eleitos, materializada em nomeações reprováveis de familiares para o aparelho do Estado ou em acumulação de funções públicas com atividades privadas. Da Europa, que é o objeto das próximas eleições para o Parlamento Europeu, pouco ou nada se diz.

Nos últimos dias, as questões internas, sobretudo a da nomeação de familiares, mereceram diversas intervenções públicas do Presidente da República, do Parlamento, do Primeiro Ministro e dos líderes da oposição e ocuparam as parangonas de jornais e televisões. É claro que o assunto não é menor, dado que a aparência externa do comportamento dos eleitos, como o da mulher de César, influencia diretamente a confiança dos cidadãos ou o seu repúdio pela política. Nesta questão, torna-se necessária a aplicação efetiva de normas éticas. Na verdade, o escrutínio público é hoje muito premente e muitos políticos não têm demonstrado sensibilidade suficiente para separar as ligações familiares, partidárias ou de amizade do que é a base das suas missões: o serviço da República e a rigorosa imparcialidade a que tal serviço obriga.

As normas legais dificilmente poderão cobrir todos os casos de promiscuidade de interesses e podem mesmo gerar novos conflitos e ofender direitos legítimos. Também o momento político não aconselha a que se tente legislar nesta matéria em período eleitoral, sempre propício à eclosão das garrafinhas de mau cheiro carnavalescas, para usar a expressão de um político francês caído em desgraça nas últimas eleições presidenciais em França por causa delas.

Neste aspeto, parece-me sensata a posição de Rui Rio - no que me sinto particularmente isento dado que as minhas opções políticas nada têm a ver com as suas -, e menos sensata a resposta da líder do PS ou as tomadas de posição do Presidente da República, felizmente comedidas.

Refira-se ainda, em matéria de transparência, o escandaloso regime que permite a colusão de interesses entre alguns deputados e empresas privadas a que continuam a prestar serviços, seja diretamente seja através de sociedades de advogados a que pertencem. A regulação ética desta questão não pode ser eficaz se, nas comissões de ética, continuarem a estar presentes deputados diretamente interessados na questão. O Parlamento tem o dever de organizar o seu funcionamento de modo a varrer as suspeições que possam pesar sobre os seus membros. E o governo tem a obrigação de velar por que as pessoas nomeadas para governar ou assessorar quem governa estejam acima de qualquer suspeita.

Mas estas questões internas não deveriam ocupar agora o palco da discussão política. Nas eleições europeias está em causa a Europa e é necessário que os nossos políticos nos digam concretamente o que tencionam defender na Europa para garantir o futuro comum. Não basta a afirmação genérica de que se pretende defender Portugal na Europa. Isso é demasiado vago e não compromete ninguém. Precisamos de saber que visão têm os nossos políticos da Europa do futuro, quer no que respeita à estratégia política quer no que respeita à moldura institucional e ao processo de tomada de decisões. Quem não responder a estas questões, não merece obviamente ser deputado europeu.


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