Manuel Igreja
A Ida à Inspeção Militar
Era um tempo em que o mundo era muito mais pequeno. A modos de dizer um homem de passo largo quase o podia percorrer num só dia. Os limites eram à medida de cada um, mas para a maioria o que se conhecia não ia além de umas léguas em redor. O resto imaginava-se.
Qualquer rapaz ou qualquer rapariga de há uma mão cheia de décadas, caso por sorte ou falta dela nascesse em aldeia por entre as fragas longe do mar, sair do círculo só por altura da ida para a tropa, no caso deles, ou quando iam servir como criadas na cidade em casa de patrões ricos em termos de comparação e não só.
Regresso de vez à aldeia era ideia de nem se pensar. A modernidade com todos os seus encantos mesmo que por vezes ilusórios fazia das suas nas mentes que se iam abrindo que nem concha com bicho germinador dentro. Dava gosto mesmo era vir matar as muitas saudades e exibir os tiques da urbanidade adquirida. Isso sim.
De cada história contada acerca do que se via e do que se fazia nos novos quotidianos fora do torrão, germinava desde logo a semente do anseio de ver chegada a vez da fuga entre quem ainda crescia à medida que ia assentando a ideia da recusa de um mourejar não muito longe da servidão.
Eventualmente muito por isso, mesmo que não só, nos mancebos a ida à inspeção militar era dia de festa e da rija. Os dezoitos anos para ser ir mostrar capacidades para se assentar praça eram aguardados e tidos como limite. Eram um marco de afirmação e de emancipação.
O dia da ida à vila para o exame médico começava cedo. Uma banda de música amanhecia por entre as ruas da aldeia em alegres acordes, não sem que antes uma boa dúzia de foguetes estalassem no céu assim que os galos cantavam, pois, a cama não se queria depois do romper da alva.
Claro que a roupa dos futuros militares era a condizer. Tudo novo da cabeça aos pés. Fato com gravata a estrear a raspar nos sapatos novos em folha a brilhar e num ou noutro caso a apertar no pé. Mas um rapaz quer-se homem.
Os moços alinhavam-se então em duas filas cada um com uma bandeira na mão e encostada ao ombro do lado de fora, e ao toque da banda marchavam até à vila em jornada de uma hora e meia mais minuto menos minutos para cada lado da viagem.
Uma fita vermelha na lapela do casaco atestava a capacidade física para se ir para a tropa. Ficava-se apurado. Uma fita verde dizia que se ficava livre e uma amarela que se ficava em espera. Ia-se às sortes e esperava-se pelos humores dela. A encarnada era um verdadeiro motivo de orgulho e mostra provada de capacidade para se erguer uma casa de bens, ou pelo menos de se ganhar sustento para mulher e filhos que se viessem a ter.
Para a confeção do almoço trabalhava o forno a lenha como no dia de S. Pedro, o padroeiro. Quem o tivesse em casa usava-o, quem não tivesse servia-se do forno comunitário. Arroz e cordeiro na mesa é que não podia faltar. O vinho, então nem se fala que nem é preciso.
Não sei bem o sentimento que ia dentro de cada um dos inspecionados nesse dia. Só suponho porque por poucos anos não sou dessa leva. Mas estava capaz de jurar que não faltavam nem o orgulho nem a esperança.
Um porque se era capaz. Outro porque se sentia ser o primeiro dia do resto da vida. Nascia a noção de que se ia sair da casca do ovo. Eles para o quartel. Elas para uma nova vida em casas melhores mesmo que alheias. Depois seguia-se a marcha da vida construindo cidades para os outros num viver que se queria muito melhor.