Alexandre Parafita
A metáfora dos ouriços
Perante as notícias mais otimistas que têm vindo a surgir sobre os valores inesperados e muito animadores do défice do país, que ajudam a volatilizar os fedores da “Troika” mas também a sublimar as “dores” de um infactível e apocalítico “memorando de entendimento” a que passaram a chamar “geringonça”, dei comigo a recordar uma parábola do filósofo alemão Schopenhauer (1788-1860) sobre o dilema dos ouriços:
Conta-se que numa noite gelada de inverno, vários ouriços-cacheiros, vendo-se em risco de morrer de frio, colaram-se uns nos outros para combatê-lo através do reforço mútuo do calor que cada um conservava no seu minúsculo corpito. Porém, se era certo que, quanto mais unidos estavam, melhor resistiam ao frio, também o era que, desse jeito, a todo o momento se picavam com os espinhos. Assim, se por momentos, se afastavam para não se ferirem, logo após cuidavam de se unir de novo para continuarem a resistir àquele que era o perigo maior: morrer de frio. Mas faziam-no com uma certeza: não era em vão esse sacrifício. Morrer de frio seria sempre pior do que as dores das picadelas.
Não restam dúvidas de que, nesta como em outras cogitações filosóficas de Schopenhauer, é indisfarçável a sua conceção pessimista da vida, como se o prazer consistisse apenas na supressão da dor, desígnio suportado por um paradoxo incontornável: quanto mais próximos estão dois indivíduos, maior é a probabilidade de se ferirem mutuamente; mas, mantendo-se distantes, também a angústia da solidão não parará de consumi-los (e então como seria no amor, se o medo de magoarmos ou nos magoarmos nos inibisse da aproximação à pessoa amada?).
Mas esta e todas as metáforas têm ainda uma outra grande virtude: agarram-se como pastilha elástica às mais prolixas semânticas. Dão para tudo e mais alguma coisa. Assim, quanto à “geringonça”, o dilema agora é conseguir encontrar a distância ideal entre os parceiros que a sustentam. Se no caso dos ouriços, a ambição é suportarem o frio sem se picarem, no caso da “geringonça” deveria ser evitarem o mais possível que as picadelas (ou ferradelas) de cada um venham a afrontar o rumo esperançoso que o país tomou. Porque sem esperança nada se consegue. A penumbra dos dias eterniza-se e as angústias coabitam sempre com os sacrifícios.
(in JN, 21-4-2017)