Chrys Chrystello
A Páscoa já não é o que era
Crónica 390. A Páscoa já não é o que era 2.4.2021
Em 1967 já não tinha a avó paterna, em 1989 perdi a avó materna, em 1992 deixei de ter o meu pai e em 2021 deixei de ter a minha mãe para passar a Páscoa, no ano em que as nossas festas, procissões e outras manifestações atávicas de atraso cultural foram definitivamente eliminadas em nome da saúde pública que assim nos purifica de hábitos ancestrais arreigados. Assim, seja natal, páscoa, ou outra festividade judaico-cristã o governo decreta confinamento, proibição de circular entre concelhos ou outra medida que nos impeça de efetivamente celebrarmos tais datas. A desculpa é de o “bicho,” o “vírus” não gostar de ajuntamentos.
Uma recordação duradoura, indelevelmente associada à infância passada na casa da Rua de Maria Pia, é a dos saltimbancos que apareciam, uma ou outra vez por ano, já não recordo exatamente quando, na época da Páscoa, para fazerem as suas acrobacias na rua em troco duns tostões. Eram em geral famélicos e escanzelados e divertiam-nos com as suas habilidades. Iam desde os palhaços a um outro a vomitar fogo, a outros marchando em cima dumas “andas” que chegavam ao primeiro andar onde eu os observava, e outros números que a memória deixou escapar. Nunca excediam uma meia dúzia de artistas que assim ganhavam a vida: o que mais me espantava é que houvesse já mulheres naquele meio, numa era em que estavam quase totalmente apagadas da sociedade caseira que lhes era imposta.
Não posso precisar quantas vezes estive na minha aldeia da Eucísia (pelo menos uma vez ao ano - todos os anos entre 1954 e 1967), mas lembro, em particular uma Páscoa, talvez em 1959, quando se juntaram os tios, primos e primas, do clã Magalhães, desde o Sendim da Ribeira (Alfândega da Fé) ao Azinhoso (Mogadouro), ao Porto e a Vila Real quando a enorme sala de jantar “velha” (que fora o quarto do meu bisavô) era pequena para tanta gente. Estava a abarrotar e até se conseguira encher a mesa comprida de doze lugares na sala de jantar “nova” dos meus avós. Havia duas cozinhas a funcionarem. As enormes salas de jantar cheias de gente. Essa será a única Páscoa que consigo evocar vivamente, e em detalhe, apesar de muito jovem. No dia seguinte a refeição foi na casa da Quinta cuja varanda era pequena para tanta gente. A família toda junta, coisa importante e hoje raramente vista. Todas as outras celebrações pascais se perderam na voracidade do anonimato e da rotina. Ou então condensei-as todas numa só. Aquela perdurou, assim como a comunhão solene da primita na Páscoa de 1962, onde também estiveram todos, enchendo todos os quartos e camas disponíveis nesse outro enorme casarão do Azinhoso. A Quinta da Eucísia é hoje Turismo Rural Bela Vista, explorado pela Beatriz Licínia, prima direita da mãe e da minha idade.
Recordarei sempre o hábito medieval de colocarem as colchas adamascadas pendentes das ventanas (tal como aqui nos Açores continuam a fazer). Essas janelas, pequenas como seteiras, a que chamávamos “janelucos" eram demasiado exíguas para dois adultos verem os andores, mas dispunham de pequenos assentos, um de cada lado, onde a avó materna e as tias, raras vezes, se sentavam a ver quem passava, tricotando ou crochetando. Desses “janelucos” as sempre pressurosas criadas deitavam os “verdes” para a rua (folhas frescas apanhadas nas imediações, eram só verdes e não desenhos elaborados de verdes e flores como aqui nos Açores) aquando da passagem de qualquer procissão, especialmente a pascal.
O momento alto das celebrações, era a sempre muito esperada cerimónia do benzer da casa, o padre, o sacristão e acólitos, com toda a parafernália, subiam os 13 degraus e no hall de entrada provavam um cálice do melhor vinho do Porto de casa, diante da família toda reunida para receber as bênçãos que nos iriam manter santificados nos próximos doze meses. Mas nem todas as benzas, bendições e bênçãos chegaram para salvar a família das leis inexoráveis da morte, assim como não bastaram para salvar a casa, mas nesses dias e nesses locais, serviam para manter viva a fé dos crentes que ali habitavam e delas necessitavam.
Sorrio ao imaginar como não estaria “animado” (“pingado”) o padre ao chegar à nossa casa, no começo da aldeia. Ou parava lá logo no início da procissão antes de percorrer o resto da aldeia? Creio que a rota era esta pelo que só estaria “animado” quando regressasse à igreja. Todas as casas teriam Vinho do Porto para lhe dar a provar ou uma pinga de “americano” espécie de vinho fino, adamado e adocicado, equivalente ao vinho de cheiro micaelense.
A pior páscoa da história português já foi há mais de 500 anos… Com a ascensão de D. Manuel I ao trono, em 1495, os castelhanos escravizados foram libertados. Todavia, o casamento do rei com a princesa Isabel da Espanha colocou os judeus novamente em clima de tensão, porque o contrato de casamento exigia a expulsão dos hereges (mouros e judeus).
. Ao isentar de inquérito ou perseguição religiosa todos os Cristãos-Novos durante vinte anos na prática significava que mesmo depois de batizados poderiam continuar a ser judeus; e, finalmente, no momento do embarque, manda batizar à força os últimos renitentes. A maior parte fica em Portugal como Cristãos-Novos mas a comunidade judaica desaparece, enquanto entidade autónoma.
Para Eduardo Mayonne Dias ((Universidade of Califórnia, Los Angeles) na sua obra “Os criptojudeus da Faixa Fronteiriça Portuguesa”), D. Manuel não tinha qualquer interesse em expulsar a comunidade, que constituía um destacado elemento de progresso na economia e nas profissões liberais. A sua esperança era que, retendo os judeus no país, os descendentes pudessem eventualmente, como cristãos, atingir um maior grau de aculturação. Os judeus, as fortunas e capacidades de trabalho, permaneciam no país, ao serviço do reino. D. Manuel pode proclamar a "limpeza" de Portugal e desfrutar do que sempre possuiu, mas a maioria dos judeus, resolve abandonar o país.. O rei, ao ver por terra a estratégia, manda fechar os portos para impedir a fuga - menos o de Lisboa. Ali se concentraram 20 mil, que esperavam transporte. D. Manuel, assustado com a ideia de que pudessem esconder as crianças e que a decisão tomada em Estremoz viesse a extravasar, determinou que a ação fosse executada no domingo de Páscoa.
Aqui nos Açores em 1690 houve uma grande tempestade causando o pânico na Terceira - dia de Páscoa (26 março), provocando a queda de chaminés, o destelhamento das casas, a destruição das "palhoças" nos "bairros" da cidade e um naufrágio na baía de Angra.
Evoco com saudades o tempo em que a avó materna, as tias-avós e primas faziam a matança e em outubro enviavam as primeiras alheiras; na Páscoa, os folares e bolas de carne; e no verão, a compota de ginjinha. Seguiram-me para todos os países menos para a Austrália que ali não podia entrar comida estrangeira. Comera alheiras e ginjinha feitas pela família em Timor e Macau. Ainda sentia no palato o sabor distinto, que sempre me acompanhara como um cordão umbilical. Há paladares como os odores, nunca se apagam do subconsciente. Teria havido Páscoas com dezenas de familiares que evoquei nas memórias transmontanas, não muitas. Em 2006 escrevi sobre a Páscoa:
Hoje não irei falar da estação festiva para muitos crentes pois - cada vez mais - deixou de ser um momento de reflexão. Similarmente ao Natal converteu-se num apelo ao consumismo de chocolates e amêndoas e ninguém se dá ao trabalho de pensar porque existem estas férias e feriados. É irónico que seja um não-crente, ateu até ao tutano, a falar disto, mas cada um é como é e não renego as origens cristãs embora professe um profundo respeito por todas as crenças e religiões desde que não sejam fundamentalistas ou exacerbadas por ódios ancestrais. Para mim a Páscoa é uma época de reflexão sobre o caminho terreno de cada um de nós (perdoem-me se isto começa a parecer uma homilia), sobre a inevitabilidade causal desta curta passagem, sobre a ineficácia de tentarmos deixar uma marca dessa passagem, sobre a futilidade de nos tentarmos afirmar enquanto seres vivos, sobre o materialismo exacerbado que nos preenche o quotidiano, sobre a falta de amor e caridade com que permeamos os dias, e a incapacidade de perdoar e ser perdoado.
Há muitas experiências de vida que seria útil partilhar e trazê-los de volta a um tempo em que a família era alargada, mas mesmo assim convivia nas festas de natal e Páscoa. Lembro-me da série Família Forsythe e creio que aquilo que se passou na mudança do séc. XIX para o XX está a suceder a um ritmo bem mais acelerado. Qualquer dia só nos conhecemos virtualmente através do Facebook ou qualquer outro instrumento virtual. Talvez seja melhor e assim haja menos intrigas e desavenças familiares. É mais difícil brigar com estranhos, em especial se não soubermos que são da mesma família... Bem, resumindo foi à moda antiga.
Em 2010 tivemos uma Páscoa diferente no calor de Florianópolis em Santa Catarina no Brasil no 13º colóquio da lusofonia quando a Prefeitura Municipal de Palhoça recebeu a comitiva para um dia cultural com oferta de almoço.
Com essa exceção a maioria das páscoas são celebradas no seio da minha nova família desde há 20 anos, os amigos dos colóquios da lusofonia pois desde 2009 que decidimos realizar o primeiro dos dois colóquios anuais nas férias pascais. Assim estivemos na Lagoa (S Miguel) 2009, Brasil 2010, Lagoa (S Miguel) 2012, Maia (S Miguel) 2013, Moinhos de Porto Formoso (S Miguel) 2014, Fundão 2015, Belmonte 2017, 2018 e 2019. Em 2020 não houve colóquio e este ano será virtual via Zoom, mas ao fim de 71 anos já nada é como dantes, as famílias desaparecem de cena, irrelevantes e com elas estas memórias que aqui deixo. Na data em que a minha mulher completa seis capicuas e celebramos 26 anos de vida em comum.