Manuel Igreja
A questão do caminho-de-ferro
Ao longo do devir da humanidade, muito poucas coisas mais tiveram a influência que a descoberta da máquina a vapor e por consequência o aparecimento do transporte por via férrea teve e diria mesmo, terá, pois, toda a gente percebeu ser esse o meio de locomoção do futuro imediatamente mais próximo, pelo menos.
Com o aparecimento do comboio que tanto espantava os índios no oeste americano, encurtaram-se distâncias, melhoram-se as comunicações, melhorou-se a qualidade de vida das pessoas, ultrapassaram-se barreiras e fronteiras, fez-se de cada jornada uma escanchinha contextualizada no tempo e no modo como este nos escorre.
Nos territórios abriram-se vias circulantes e comunicantes em tudo parecidas com as veias que nos corpos dos animais, nós incluídos, permitem que o sangue ande de um lado para o outro, para cima e para baixo, sem descanso até que as coisas acabam mal, como é nosso destino. Bem tentamos que se alongue o limite, mas como dizia outro, a médio prazo estamos todos mortos.
Apesar de se ter atrasado um pouco a se implementar em Portugal, como foi costume em quase tudo no tempo do virar de página do mundo, pode dizer-se que até meados dos anos oitenta do século XX os combóis eram regulares e frequentes no nosso país, descontando os icónicos atrasos de horário pois comboio nem era comboio sem uma falha na pontualidade. Mais ronceiros por ali, menos ronceiros por aqui, apitavam a assinalar a passagem e a saudar quem os via rolar sobre os carris.
Aconteceu, porém, que, com a adesão de Portugal à União Europeia que Deus Nosso Senhor proteja na Sua infinita sabedoria, o dinheiro começou a chegar às carradas vindo de Bruxelas com o intuito de nos dar alavancas para o desenvolvimento que ia mais vagaroso que trem na linha do Corgo que tinha pontos em que um cristão podia sair em andamento para fazer uma necessidade e voltar a ele uns metros mais à frente.
Nada melhor se achou então, que desmantelar-se tudo o que fosse via férrea para se abrirem autoestradas para circulação de luzidios automóveis, sonho arreigado de qualquer português que se quisesse dar ares. Foi um ver-se-te avias de alcatrão espalhado. As veias para a circulação do sangue agora azul porque erámos mais importantes substituíram o ferro pousado e estendido no chão de um país que julgou estar a pular para a vanguarda.
As máquinas não pararam de imprimir notas que vinham do estrangeiro para construção de autoestradas sem graça e sem proveito suficiente. Existem por toda o lado e vão dar a toda a parte, mas em muitas delas o tráfego não é suficiente para a geração da receita que permita o pagamento da obra de construção e de manutenção apesar do insano custo das portagens. Nada que preocupe os privados que adiantaram os euros.
O Estado com o nosso dinheiro garante-lhes a receita com o devido valor acrescentado. Por isso interessa que as nossas viagens se façam por elas. Quantas mais melhor se paga a obra que a par de outras nos endividou até à quinta geração. Não adianta, pois, contarmos mais com o caminho-de-ferro apesar de isso contrariar o inteligente e o recomendável.
O buraco está aberto e tem de ser tapado. É fundo e voraz por causa da força centrifugadora que arrasta para dentro de si enormes recursos num efeito de tornado em que o dinheiro esvoaça no ar e depois cai lá dentro. O caminho-de-ferro em Portugal está mal e não se recomenda.
As máquinas enferrujaram, os motores griparam e as linhas ou foram desmanteladas ou estão desmazeladas. As cancelas das passagens-de-vila não sobem nem descem. Foram condenadas pela nossa pacóvia vaidade e pela falta de visão dos nossos maquinistas.