Alexandre Parafita

Alexandre Parafita

A “Serração da Velha”: mas quem é a “velha” que esta noite vai ser serrada?

Celebra-se esta noite de 4ª feira (23 de março), a tradição da “Serrada da Velha”, também designada “serração da velha” ou “serra da velha”, um antigo ritual hoje em desuso, mantendo-se apenas em escasso número de comunidades rurais. É uma tradição com origem dos antigos ritos de passagem que simbolizavam a expulsão do Inverno. Embora seja hábito os rituais visarem as mulheres idosas quando avós, sujeitando-as a severas críticas, que por vezes dão azo a muitos excessos, o certo é que, e muitos desconhecem-no, a “velha”, neste ritual, não é mais do que uma figura simbólica, uma entidade mítica, conotada com as agruras da fome, privações, jejuns, repreensões e penitências quaresmais. A mitificação da “velha” é, de resto, muito frequente na tradição popular, como mostra a designação de “arco-da-velha” (um nome popular dado ao “arco-íris”), de “jogo da velha” (nome alternativo do “jogo do galo”), ou a “levada da velha” (nome de represa de água).

A “velha” é, pois, a Quaresma. Serrar a velha é serrar a Quaresma ao meio, em rituais protagonizados por adolescentes com atos de rebeldia contra os rigores e a censura impostos pela Quaresma. Não é por acaso que, no calendário, a “serração da velha” acontece sempre numa 4ª feira, no dia exacto do meio da Quaresma. “Serrar a velha” é, pois, serrá-la ao meio, o que simboliza a expulsão do inverno, o esconjuro das trevas invernais, e a abertura para o tempo mais auspicioso da primavera.

A serração é, assim, o resquício de um culto pagão voltado para o esconjuro das trevas invernais, da esterilidade dos campos, almejando o rumo da luz esperançosa da primavera, o tempo da fecundação e procriação. Os rituais são, geralmente, protagonizados por adolescentes com actos de rebeldia contra os rigores e a censura impostos pela Quaresma, e variam consoante a dinâmica interpretativa da cosmogonia das comunidades.

Em algumas, expõe-se num carro de bois um boneco de palha que é serrado e/ou queimado pelos rapazes com recitações versejadas de crítica social. Noutras, as mais comuns em Trás-os-Montes, são visadas as mulheres que no último ano hajam sido avós. Os rapazes, munidos de um embude, e serrando ruidosamente um toro oco de madeira, recitam as designadas “toradas” à porta das visadas, por vezes com severas críticas: “Ó tia Joana Micas / Vimos cá serrar-lhe as pernas / A ver se deixa de andar / Sempre a correr prás tabernas”. No cortejo, tomam lugar rapazes mais novos ainda, chamados de “netinhos”, que alternam as recitações com seus choros estridentes e prolongados.

Esta tradição mantém-se igualmente no Brasil, para onde foi levada pelos portugueses no Séc. XVIII, representando, não só uma espécie de pausa nos rigores das penitências quaresmais, mas também uma crítica à figura das avós pelos métodos punitivos a que sujeitavam as gerações mais novas, em especial as raparigas. Os excessos entretanto cometidos chegaram a tal ponto nos finais do séc. XIX, que teve de ser aplicada uma postura legal proibindo os chamados “serramentos de velhos” com uma multa de cinco mil réis aos infratores.

 


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