Chrys Chrystello

Chrys Chrystello

A verdadeira banha da cobra

Crónica 336, a verdadeira banha da cobra

Este retorno a uma normalidade que não volta mais só me fez recordar uma cena de infância, há muito desaparecida do nosso quotidiano.

Quem cresceu no Porto recorda-se dum divertimento gratuito nos anos 50 e 60 do século passado, aos domingos, na Praça do Marquês de Pombal, em frente à Igreja. Por entre os idosos que ali jogavam às cartas (e passavam o vazio dos dias por entre uma “bisca” ou uma “sueca”) surgiam, camionetas vagamente reminiscentes das velhas caravanas do oeste bravio dos EUA.

Em vez de colonos temerosos dos índios (nativos americanos, como é politicamente correto chamar-lhes agora) havia uns homenzinhos de aspeto duvidoso, cabelo cheio de brilhantina, com um megafone (ainda não havia microfones sem fios) a falar muito alto e a atraírem os passantes e basbaques com o verdadeiro elixir da longa vida, o elixir contra a calvície, e outras proezas que a medicina tradicional europeia nunca viria a adotar. Juntava-se sempre uma dúzia de pessoas, para ouvir umas piadas e a arenga bem elaborada. Havia, mais cedo ou mais tarde, um comprador talvez coagido, ou um comparsa do vendedor da “verdadeira banha” da cobra, que  não é personagem de ficção.

Existe, progrediu e anda, por entre as turbas, dissimulado de pessoa de bem, ou até mesmo de empresário ou político. Sabemos que a banha da cobra[1] não serve para nada, mas a firmeza do homem empoleirado na carripana, com a sua bem estudada eloquência, persuadia muitos sobre as mil e uma aplicações desse remédio miraculoso contra impigens, mau-olhado, torcicolos, urticária, febre dos fenos, dores de dentes, nervos, escleroses, artroses, entorses, diarreias, sarampo, escarlatina, espinhela caída, dores das cruzes, doenças do miolo, treçolho, verrugas, cravos e desmanchos. Todos eles eram curados pelas propriedades da banha desse animal repugnante, a cobra, e tal como ela assim a verborreia oratória do vendedor ia enleando as pessoas que paravam para o ouvirem. 

Ainda estão bem vívidos os pregões

"Não custa nem 20, nem 15, nem dez! Custa apenas cinco, e quem levar dois leva um totalmente de graça. Um para aquele senhor, outro para aquela menina...

" Por vezes era em elixir, outras em pomada, outras ainda em forma líquida…o povo comprava os frasquinhos milagreiros e o vendedor da banha da cobra ia-se governando. Apregoava a honestidade afirmando ter licença camarária e não estar ali para enganar ninguém. O  vendedor da banha da cobra existe há séculos, a sua origem é chinesa lá onde se vende óleo de cobra de água (Enhydris chinensis), usado para tratar dores nas articulações, embora o seu sentido seja mais associado jocosamente por especialistas em criptografia para designar produtos que dão ao usuário uma falsa sensação de segurança.

O óleo de cobra refere-se a falsos remédios vendidos nos EUA no século XIX com a promessa de curar qualquer doença. Em tecnologia, o termo é usado para produtos que oferecem segurança absoluta e criptografia indevassável, mas de qualidade questionável ou inverificável. Se é seguramente certo que a banha da cobra não cura, também não consta que daí tenha saído algum mal para a saúde pública e para o mundo.  E não havia mal ou maleita onde o seu resultado não fosse prodigioso!.... Tudo e o seu contrário a famosa pomada resolvia. E para que não houvesse dúvidas os argumentos eram um primor de explicação: “É que bocencia tem uma dor de dentes, mas o dente não dói. O dente é corno, o corno é osso e o osso não dói, o que dói é o nervo”.

Gostava de estar convicto – mas não estou – de que a maioria das pessoas não acreditava minimamente naquilo, mas inexplicavelmente compravam, compravam! E a vida de vendedor de ilusões prosperava! Embora há muitos, muitos anos não ouça o seu pregão genuíno, não tenho dúvidas de que ainda andam por aí. Agora, nesta era de globalização, talvez de colarinho branco e quem sabe de barba bem aparada para aparentar respeitabilidade. Talvez os dos bancos que foram à falência BES, BPN; Banif, etc.…. Pode até ser verdade o que muitos dizem, de que foram tirar cursos à Universidade Independente e entraram todos para o Governo…

Mas do que me lembro mesmo, e que me mesmerizava em tão tenra idade, é de ficar a ouvir os vendedores de banha de cobra antes de ir à missa dominical e depois ir almoçar na cantina da Igreja que ficava do lado esquerdo sob a cripta. Até hoje tenho esta frustração enorme de ainda não me ter aparecido o vendedor de banha da cobra que me convencesse, como devem ser felizes aqueles que acreditam e compram...

Chrys Chrystello, Jornalista, Membro Honorário Vitalício nº 297713 [Australian Journalists' Association] MEEA]

Para o Diário dos Açores (desde 2018) Diário de Trás-os-Montes (desde 2005) e Tribuna das Ilhas (desde 2019)

 


[1] data do primeiro século a.C. e inspira-se numa receita secreta de teriaga, que, segundo crenças populares antigas, seria um medicamento complexo, com sessenta e quatro componentes. Acreditava-se que era um antídoto para venenos. Na confeção da teriaga, a carne de cobra era fervida muitas horas ou calcinada até ficar em pó, conservado em frascos, depois misturada com gordura, sob a forma de unguento. O nome desta pomada era a banha da cobra. O grande número de componentes, a raridade de alguns, e o elevado preço, tornavam difícil o acesso a este medicamento. Passou a produzir-se outro, com menos componentes: bagas de louro, mirra, genciana, aristolóquia e mel. Era a teriaga dos pobres. Os que viviam em locais mais afastados dos centros urbanos, por falta de um composto, usavam o alho para combater a peste e outras doenças, conhecido como a teriaga dos camponeses.


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