Manuel Igreja

Manuel Igreja

Abandonados

Inquietantes. Os tempos que se avizinham podem vir a ser muito complicados, afirmam os estudiosos e sentimos nós, cada qual à sua maneira. Dizem que a História se repete, a primeira vez como tragédia, a segunda como farsa, o que parece ser bem verdade se olharmos para o agora e o compararmos com o de antes.

Karl Marx que foi quem começou por ensinar o dito, tinha razão neste seu modo de ver o desenrolar das coisas do mundo. Noutras poderia não ter, mas isso são outros quinhentos agora para aqui não chamados.

Um olhar retrospetivo, facilmente nos faz concluir que o devir tem sido sempre aos sobressaltos com as bonanças e as tempestades eternamente a revezarem-se no meio dos avanços das ideias e das tecnologias que ora dão para bem, ora dão para mal, conforme o uso que se lhes dá.

No fundo, por mais novos que nos parecem os dias, eles não mais são do que a repetição das mesmas coisas em contextos diferentes. Para não irmos muito no recuado, basta que façamos marcha-atrás até à Revolução Industrial, um século e meio, mais coisa menos coisa. Foi aí que tudo começou no que se refere ao que na modernidade mais utilizamos e mais nos influencia.

Antes as ruturas eram muito mais espaçadas e de efeito muito menos imediato. O sol limitava-se a nascer e a deitar-se e a lua andava de quarto em quarto a esconder.se dele. Com ainda é, mas de maneira diferente, pois sabemos mais deles e percebemos melhor os seus humores. Nesse tempo em que se inventou grande parte da maquinaria que no serve, começou o mundo a ficar de pernas para o ar.

As estruturas sociais tremeram, os quotidianos foram disruptores, nasceram novos hábitos para velhos monges, interesses instalados sentiram-se ameaçados e interesses novos foram arreigados. Temeu-se pelos empregos, sentiram-se vertigens com as novas velocidades, houve medo e esperança sem medida, houve lutas e posições contra e a favor.

Mais pareceu a muitos que o diabo andava à solta, enquanto a outros mais pareceu que seriam muito melhores os dias ainda por nascer. E foram, podemos nós agora afiançar sem ponta de equívoco, com o devido respeito por alguns pessimistas de então, como por exemplo Alexandre Herculano, grande escritor e historiador que teve medo dos combóis e deles disse muito mal.

Dando aqui um salto no tempo e um pequeno avanço no escrito para nos situarmos no aqui e no agora. No que vivemos. Na nossa sociedade de bem-estar. Também estes dias são de rutura. Com o saber acumulado e afinado, foram desenvolvidas tecnologias dignas de assombro. Espantosas, algumas ao ponto de quase parecerem obra de pequenos deuses. Perfeitas ao ponto irmos sendo desnecessários, sem préstimo a não ser para gastar dinheiro.

Parece bom. O sonho de qualquer civilização. O problema é a falta de senso, de grandiosidade, de carisma, de solidariedade e de bondade. E de justiça, essencialmente de justiça. Realmente o presente e o futuro podiam ser melhores e mais garantidos. Há recursos para isso em absoluto. A riqueza criada dá para quase possibilitar um arremedo do paraíso na Terra.

O problema é que o horizonte escurece. Avançamos aos tropeções e a arrepelar os cabelos vislumbrando mais o inferno que o éden. Não soubemos aproveitar para equilibrar. A desigualdade grassou e grassa e as trovas do tempo que passa, dizem-nos da desgraça encapotada na alienação.

Nas nações, batem descompassadamente os corações. Campeia a insegurança e mirra a esperança. Cada um outro, crescentemente é visto como inimigo e um perigo para cada qual. Os cidadãos sentem a desdita com ouvidos atentos aos dizeres dos que prometem espalhares de teres e de haveres no fim dos caminhos vendidos a pataco e com muito espavento.

Os líderes escolhidos não souberam nem sabem guiar os destinos. Sem carisma e sabedoria, deixaram o campo aberto aos usurpadores do conhecimento e das tecnologias sem as ideologias que devem dar lastro ao fazer acontecer. Ladinos, os extremistas lançam as garras, propagandeiam e cristalizam os raciocínios, toldam as visões e apontam supostas soluções.

Os mais jovens estão a tornar-se menos felizes que a geração dos mais velhos e estes pouco se importam. Abandonados, vamos aderindo ao circo sem pão.



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