Luis Guerra

Luis Guerra

Aceleração histórica e paisagem de formação

Nos últimos dias de cada ano, é comum ouvir-se e ler-se acerca dos balanços do ano que finda, nos mais variados domínios: político, económico, cultural, desportivo, etc.

Contudo, para se fazer este tipo de balanços, convém sempre fixar o ponto de vista a partir do qual se quer acometer essa tarefa.

Assim, por exemplo, uma perspetiva interessante é observar como a velocidade das mudanças sociais teve impacto na vida de cada um de nós e como nos vamos posicionando face a elas.

Com esse propósito, reuni-me recentemente com alguns amigos, uns poucos de forma presencial, no Parque de Estudo e Reflexão Minho, e outros à distância, para refletir e conversar sobre essa experiência.

Nesse sentido, começámos por visionar em conjunto um breve vídeo sobre a paisagem de formação - entendendo esta como o conjunto de objetos tangíveis (edifícios, veículos, roupas, brinquedos, etc.) e intangíveis (valores, crenças, ideais felicitários, ídolos, etc.) que operavam na nossa etapa de formação (infância e adolescência), contribuindo para configurar uma sensibilidade epocal -, da autoria do realizador espanhol Álvaro Orús e que está disponível na Internet: https://www.youtube.com/watch?v=72OFr19dyPI .

Depois, cada um de nós tomou o seu tempo para identificar situações em que reconhece um certo desfasamento entre a sua paisagem de formação e a contemporaneidade, em especial casos que denotam alguma desadaptação às exigências do momento atual e que, por isso, podem dificultar o próprio desenvolvimento pessoal.

Ressalvou-se que o interesse desse tipo de observação não é a adesão acrítica a tudo o que é moderno nem o apego incondicional ao que é antigo, mas sim a possibilidade de escolha consciente da paisagem interna de cada um, em função de um propósito evolutivo.

De facto, prestando-se atenção aos próprios processos mentais, percebe-se que vivemos sob uma espécie de “ditadura da memória”, a qual se intromete em todas as imagens ou representações mentais que a nossa consciência elabora, criando uma tendência pessoal mecânica e repetitiva que molda o nosso comportamento, onde entra em jogo precisamente a paisagem de formação de cada um.

Por outro lado, a aceleração histórica e a pressão do meio social obrigam-nos a fazer ajustamentos de conduta que, muitas vezes, nos provocam contradição interna, fazendo-nos sofrer.

E, portanto, refletir sobre estas questões é, no fundo, indagar sobre os condicionamentos da consciência humana ou, dito de outro modo, sobre as condições de exercício da própria liberdade.

Feito este enquadramento, foi muito divertido e instrutivo verificar a diversidade de experiências que foram sendo partilhadas entre os participantes.

Num caso, talvez mais óbvio para todos, descrevia-se as dificuldades pessoais perante as inovações tecnológicas, que variam desde a recusa absoluta de aprendizagem, muitas vezes com o (falso) argumento de que não se precisa disso para nada, até ao nervosismo que se sente quando se é colocado perante um equipamento ou uma aplicação novos.

Noutro caso, falava-se da sensação de perda que acompanha as mudanças aceleradas, que é uma porta aberta para a nostalgia do passado e até para a mitificação deste, mas que, no fundo, põe em evidência “a perda” da própria paisagem de formação identitária face à transformação da paisagem externa, gerando alguma desreferenciação e desorientação.

Um terceiro observava a tendência, própria e de outros, para se continuar a interpretar os acontecimentos mundiais com o olhar típico da Guerra Fria, gerando alinhamentos mecânicos segundo os afetos de outrora por uma ou outra das partes ou países em disputa.   

Outra pessoa referia-se às expetativas relativamente ao sexo oposto, moldadas num tempo que já se foi, e às dificuldades que isso criava nos relacionamentos, bem como às expetativas em relação ao “lugar” social de outras minorias (étnicas e sociais), que se convertia, muitas vezes, inadvertidamente ou não, em fator de resistência cultural à sua inclusão e mobilidade social.

Outro participante aludia ainda às dificuldades para comunicar com os jovens, nomeadamente quanto à temática e aos canais escolhidos.

Enfim, a conversa trouxe ainda outras reflexões interessantes e reveladoras, mas que seria exaustivo estar a reproduzir aqui.

Todavia, a partilha foi indubitavelmente útil para todos porque permitiu reconhecer reciprocamente situações que estavam mais ou menos ocultas em cada um, abrindo uma margem de liberdade para romper o determinismo que nos impede de avançar rumo ao futuro.

 

Luís Filipe Guerra, juiz e membro do Centro Mundial de Estudos Humanistas


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