Manuel Igreja
Ardeu
Garantidamente. Para o ano quando o calor apertar e a sede despertar, a área que será pasto das chamas vai ser muito menor do que a deste ano da graça de dois mil e dezassete da era de Cristo. Como é uso as labaredas horrivelmente belas e trágicas irromperão, o negrume marcará almas e paisagens, mas a extensão ardida vai ser muito menor.
Serei adivinho ou estarei a inventar, dizem os caros senhores e distintas senhoras que isto leem, mas não. Nem coisa que se pareça. Unicamente uso a lógica. Então, se ardeu a modos de dizer quase tudo o que havia para arder nestes meses, e ainda muita canícula e tempo seco há-de vir que este ano os dias e as noites estão de ananases, como poderá consumir o desgraçado mais território? Não pode. Só se lhe der na naga e se atrever a invadir a Espanha.
Poderá, mas assim não entrará nas estatísticas lusas que pelo menos até agora pouco mais serviram do que para alguém construir bonitos gráficos extremamente valorizados por quem os exibe, mas logo deixados esquecidos nos discos rígidos dos computadores, porque outros desenhos lhes tomam a dianteira na moda como sempre esporadicamente porque a espuma dos dias a isso leva.
No dia em que isto se escreve vai o agosto para cima de meio e bem que se pode dizer que este foi o verão do nosso descontentamento enquanto nação que se preza por sentir a desgraça alheia como a desdita de cada qual. Uma aflição sentida na área central do território, florestal por condição e em boa parte por imposição, logo é vivida em comum de norte a sul.
Todos corremos em solidariedade com a comunicação social a embandeirar em arco. No que respeita aos fogos que se atearam de propósito, sem querer ou porque o acaso das circunstâncias assim o ditou, nada podia ter sido pior. Morreu gente que é sempre muita nem que seja somente uma pessoa, riquezas e quotidianos foram extintas e profundamente alterados.
Tudo mingou, exceto a demagogia dos de sempre e o volume do negócio de alguns que existem para isso mesmo, uma vez que em tempos alguém se lembrou que a defesa dos bens públicos se faz melhor com recurso a atividades privadas. Foram décadas a jurar e a prometer. Foram anos a fio a verter lágrimas de crocodilo. Foram milhares de promessas e de juras feitas de que se iria olhar e planear convenientemente o setor florestal, de maneira a que o lume não encontrasse combustível. Balelas não faltaram, assim como não faltaram nomeações para cargos bem remunerados e bom chão para nascimento de muitas vaidades em gente muito cheia de si. De nada adiantou e nada se fez. Nem sequer se tentou permitir que os terrenos de floresta dessem um pouco de rendimento aos seus proprietários para que estes os sintam como seus e merecedores de algum zelo.
Cresceram os matagais porque se não zelaram os eucaliptais nem os pinheirais. Nem sequer o facto de a floresta proporcionar uma boa fatia do PIB, ou seja, da riqueza nacional que se produz, levou a que se lhe deitassem cuidados redobrados e inteligentes. Nem sequer era ou é preciso inventar alguma coisa. Basta que se olhe e se copie o que se faz no estrangeiro. Ou então apesar disso, que se invente que nisso ninguém nos leva a palma. Excelentes estudos é o que mais há arrumados em gavetas, graças a Deus Nosso Senhor e ao conhecimento detido pelos nossos sábios, pois nisso de cabeças estudiosas e sabedoras pedimos meças ao mais pintado. No concretizar é a que porca torce o rabo, como diziam os antigos que juram não ter memória de inferno como o deste ano.
Resta-nos a conclusão de que não pode vir a ser pior. Mesmo que arda em fio no futuro mais próximo mais área só irá arder restolho. As árvores já se sumiram. Umas viram papel, outras fizeram delas cavacos, e a outras só lhes restaram os cacos. Este ano Portugal virou brasume. O verão teve um travo de azedume. Ardeu. Ainda não verdeja, mas vai verdejar. É uma questão de tempo por força da mãe natureza. Apesar de nós.