Luis Ferreira
As caras e os caretos
Após 40 anos de tentativas finalmente veio de Bogotá na Colômbia, o anúncio da atribuição aos Caretos de Podence de Património Imaterial da Humanidade, pela Organização das Nações Unidas. Além do Cante Alentejano, do Fado e dos Bonecos de Estremoz, Portugal passava a ter mais um emblema patrimonial para mostrar ao mundo.
É de louvar e agradecer este atributo. Pena é que ele não inclua toda a região de Trás-os-Montes, pois há Caretos também em Varge, em Salsas e até em Bragança para além dos de Podence. Terá havido talvez uma falta de sintonia para que tal atributo pudesse ser ainda mais relevante.
Falar dos Caretos é falar de uma personagem masculina mascarada, que veste um fato de lã às riscas de cores garridas, chocalhos à cintura e um pau na mão em que se apoia nas suas correrias pelas ruas das aldeias. As máscaras são rudimentares de couro, latão ou madeira, pintadas com cores idênticas aos fatos, vermelho, amarelo, verde e preto.
As suas origens fazem parte de uma imensa nublosa que se estende até ao Neolítico, período em que o homem descobre a agricultura e a importância do seu desenvolvimento para garantir a sua sobrevivência. E porquê? Nesta época a agricultura era imberbe. Uma descoberta que iria manter o grupo num mesmo local à espera das colheitas que os iria alimentar. Era importante que houvesse produção. Festejar de alguma forma este tempo, fosse como fosse, era esperar que a sorte os bafejasse. Tempos de incerteza marcados por rituais que alimentavam a esperança. Depressa se transformaram em tradição milenar. Reforçaram-se nas comunidades célticas, no período pré-romano e nunca mais se perderam até aos dias de hoje.
Na Idade Média a tradição foi mais intensa. Tempos de crise profunda, de maus anos agrícolas, de pestes e epidemias terríveis, levavam o homem a temer o futuro e a sua sobrevivência. O medo apoderou-se essencialmente das comunidades agrícolas. O medo da morte impôs-se e arrastou o homem para atuações mais marginais e crenças mais estranhas.
Claro que a sua simbologia, nos dias de hoje, não tem o mesmo objetivo de há séculos. Hoje é a festa da aldeia e não está em causa a colheita que se quer abundante. É apenas uma Festa profana que, contudo, mantém um tempo, uma marca que a caracteriza: o início da Primavera e o Carnaval. É no domingo gordo e no dia de Carnaval que os caretos festejam e se fazem ouvir.
Parecem ter o diabo no corpo. Correm, saltam, dançam e perseguem as raparigas solteiras que se atravessam no seu caminho, além de intimidarem quem passa por perto. É uma alegria mágica, contagiante, eufórica, à mistura com receios variados. De pau na mão e chocalhos à cintura, envoltos num barulho ensurdecedor, eles correm sem tino e sem rumo certo, afastando os males e as gentes que se aproximam.
Até aos anos 60, as máscaras que fazem parte da indumentária dos caretos e mesmo os caretos, mantêm a sua importância, mas depois com a guerra colonial, deu-se a desertificação do mundo rural e os rapazes são mobilizados para a guerra colonial e deste modo, muitas das festividades deixaram de se realizar. Não havia rapazes para manter a tradição.
A revitalização destas festividades aldeãs deu-se depois do 25 de Abril. As aldeias reanimaram-se e tentaram fazer renascer as antigas tradições e transformá-las em Festas da Aldeia, marcando assim, um ritmo diferente nas comunidades rurais e ao mesmo tempo, marcando um momento que se pretende ser tradicionalizado. Podence é um desses exemplos.
Imortalizar estas tradições ancestrais, quer como um património da Humanidade, quer como uma tradição local ou uma festividade, é imprescindível para que essas aldeias atraiam gente e, se as não radicaliza, pelo menos no dia de Festa, a aldeia vive momentos gloriosos de fama e de revivência de uma tradição que não se quer apagar da memória de um povo.
Curioso é que sendo uma festa de rapazes, hoje já algumas raparigas se disfarçam de caretos e percorrem, mascaradas, as ruas da sua aldeia. Ninguém as conhece. Passam despercebidas, qual rapaz agressivo, chocalhando as garotas solteiras e os visitantes que se atravessam no caminho. As aldeias, desertificam-se, infelizmente. O mundo rural perde muito da dignidade que sempre teve. As razões são variadas e são elas que permitem que as raparigas se transformem em caretos e façam as delícias de quem se desloca a estas aldeias nordestinas para ver e se divertir com a festividade dos Caretos. É um modo de se manter a tradição.
Bem haja a Organização das Nações Unidas em atribuir este Património a Podence. Agora o tempo será diferente. A tradição será para manter.