Manuel Igreja

Manuel Igreja

As Cartas para Fátima

Sou pai e não fui à guerra. Tivesse a madrugada que se esperava e o dia inteiro e limpo onde emergimos do silêncio para livres habitarmos a substância do tempo, como escreveu Sophia, acontecido uma mão cheia de anos mais tarde, e seria o mais certo ter ido. Possivelmente não falharia a convocatória.

Mas não fui e ainda bem, mais não seja porque essa coisa de andar aos tiros a matar quem se não conhece por ordem de quem se conhece e se odeia, é algo que nem é para mim e também para si senhor e senhora leitora, já agora e digo eu, pois isto hoje em dia tem que se ter cuidado com certas coisas.

Há, no entanto, muitos portugueses que foram e vieram sendo outros porque se lhes esburacou a pele da alma. Outros, infelizmente, ou não voltaram do outro lado do mar, ou vieram feitos heróis mortos. Sucumbiram no teatro de operações como dizem certas figuras quem enchem a boca e impam de importância quando aludem a assuntos de fardas e continências.

Para minha sorte fui militar durante pouco mais de um ano e meio, brinquei à guerra, fiz de conta, mas mesmo assim garanto que me ficaram marcas no fundo da memória e do modo de ser. Superficiais, banais, e sem efeito, a modos de dizer quase todas boas, pois estão rodeadas de algum sacrifício, mas também de muita borga. Coisas da juventude!

Não é o caso, porém e infelizmente dos valentes que foram dar com as costas em África numa guerra sem sentido e fora de tempo, porque a falta de visão do mundo e do seu evoluir dos mandantes nacionais encrencou o país empurrando-o para o fim dos tempos, como se não houvesse um tempo próprio para tudo. Sem dó nem piedade quiseram parar a História.

Milhares de jovens foram e não voltaram. Ninguém regressou. Os que não feneceram e retornaram ao lar, em nada eram já iguais aos que partiram do cais de Lisboa. A vida molda-nos, mas a guerra altera-nos a essência e espalha demónios que se alojam bem dentro do alçapão de cada sofredor nela interveniente.

Mas ela não esculpe somente quem parte para guerrear. Qual escultor sem alma e sem dó, molda e cimenta toda a sociedade nela envolvida e por causa dela sofrida. Destrói e alimenta-se de sangue, por isso corrói, roí e forja personalidades e anseios.

As cartas remetidas a Nossa Senhora de Fátima que agora se encontram à vista para serem lidas, espelham toda uma sociedade em incompreensão, em desespero e em sofrimento. Milhões de linhas escritas, bordam todo o tecido envergado pelo Portugal junto ao mar plantado. Revelam um país com a alma caiada de negro.

Milhões de preces, apelam para que o tempo passe depressa. Centenas e centenas de pedidos espelham gritos de dor, desejos profundos nunca emergidos e dificilmente conseguidos. Segredos, e segredos nunca revelados de temores, de amores e de desamores. Cumplicidades que se supõem na escrita que busca vontades que urge serem concretizadas.

Empunhei uma metralhadora, mas nunca dei tiros nem nunca fui um alvo a sério. Por isso os meus pais não tiveram de ser dilacerados com a visão do paquete a mover-se para a terra de todos os medos. Não escreveram por isso a Nossa Senhora. Nem eles nem eu fomos uns dos milhares de remetentes.

No entanto as cartas dizem-nos respeito a todos. Estamos nelas. Foram escritas por gente igual a nós. O caminho é o mesmo e é de todos. Enquanto cidadãos não devemos deixar que se perca a memória.

Pode ser que pelo menos assim quem penou, sinta que valeu um pouco a pena e que a distância para o céu é um pouco mais pequena e que nem será necessário um marco do correio.


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