Chrys Chrystello

Chrys Chrystello

As festividades de verão - tradições adulteradas

crónica 280. no pasa nada silly season 19.8.19

As semanas passam vertiginosas nesta voragem do tempo para quem na terceira idade vê o horizonte a acercar-se à velocidade de um Shinkansen (comboio-bala).

É tempo de férias para muitos, de praia ou de greves para fazer parar o país e condicionar as próximas eleições, já que este ano os incêndios não andam de feição. Os campos extremam-se, uns falam das liberdades constitucionais coartadas pelo decreto dos serviços mínimos quase máximos, outros falam da tramoia dos patrões que pagam extras sem ser no salário, para fugirem a impostos, e essa greve encheu noticiários dias a fio, como se de futebol se tratasse. Nos Açores nada se passou e como é habitual nesta época, os telejornais eram preenchidos pelas festas, festinhas e festarolas em todas as vilas, freguesias e lugarejos do arquipélago.

Uma tradição totalmente desvirtuada e comercializada desde há uns anos, mas que serve para o velho espetáculo de panem et circensis de que os autarcas tanto gostam. A componente religiosa esfuma-se por entre mil e uma atividades comerciais que tanto dinheiro dão a ganhar a “artistas” que para cá voam. Desde que cá arribei, pouco mudou e recordo a descrição das primeiras festas locais a que assisti em agosto 2005.

A maioria das festividades nos Açores coincide (e não fortuitamente) com datas e acontecimentos religiosos, em particular com dias relativos a determinados santos, o que se explica por uma tradicional forte devoção do povo açoriano em geral. Destas festividades, uma boa parte é comum entre diferentes ilhas do arquipélago, como por exemplo as Festas do Espírito Santo que se celebram um pouco por todas as ilhas, com algumas variações e diferentes datas. Outras, são já específicas de determinadas localidades, o que lhes atribui um caráter único, fazendo deslocar, em alguns casos, pessoas de várias partes dos Açores e do mundo a acorrer a elas. Cada freguesia tem um santo protetor ou padroeiro, santo este a quem é dedicado um dia particular do calendário em que se celebram as Festas da respetiva freguesia (é comum ainda haverem várias freguesias que partilhem o mesmo santo padroeiro). Nas zonas piscatórias, é muito frequente ser este papel entregue a São Pedro, protetor dos pescadores. Nossa Senhora do Rosário é normalmente festejada em outubro e as maiores festas a ela dedicadas são as da Lagoa (S. Miguel) e Lajes (Pico), mas convém não esquecer a pequena freguesia da costa norte de São Miguel, onde vivo, a Lomba da Maia que celebra sempre no último domingo de agosto esta santa, tão venerada que até esteve para dar o nome à freguesia…

"... O rei, por certo, não teria hesitado em desautorizar o bispo D. António. Havia-o feito naquele mesmo ano de 1699. A Lomba da Maia, então sob a jurisdição paroquial da Maia, não chegara a ser paróquia porque o rei quisera acautelar a integridade dos rendimentos dos párocos da Maia.” (in Mário Moura: a criação de uma paróquia")

Passa esta população – maioritariamente rural - um ano inteiro na ansiada espera desta semana, fazem-se preparativos, vestidos, sonham-se casamentos e noivados, preparam-se refeições, convidam-se parentes emigrados, há uma sofreguidão imensa na voragem dos calendários. As casas são pintadas, retocadas, melhoradas para estarem prontas nessa última semana de agosto. Colhem-se verdes e flores para enfeitar as ruas em modelos, mais ou menos elaborados a fim de que a procissão de domingo ali passe. Cabeleireiras e modistas não têm mãos a medir para tentarem que todos os habitantes estejam no seu melhor, quanto a apresentação, na procissão e noutros eventos celebratórios. Toda a vida da freguesia se centra em volta desta semana de celebrações, procissões e libações. O mundo podia acabar, mas continuar-se-ia a falar das Festas de agosto, em que a população residente é incrementada com o retorno de centenas de filhos expatriados pela norte América, uns com vozes anglicizadas e outros afrancesados. Reveem-se parentes, e aqui na Lomba da Maia, parece que todos são primos entre si há várias gerações. Há uma elevadíssima consanguinidade. Todos põem a conversa em dia, bebem uns copos a celebrar o encontro, a fim de dar tempo a que todos narrem as suas proezas, riquezas, e outros mitos. Trata-se de uma semana completa de festejos, culminando com a rica procissão de domingo e na qual se incluem dignatários religiosos e autoridades civis, além das ditas forças vivas da terra. Um verdadeiro desfile para impressionar, todos com seus fatos domingueiros ou melhores ainda se as posses assim o permitiram. A procissão ricamente elaborada inclui a trasladação - na véspera - da imagem para a Igreja velha ao fundo da rua, seguida da visitação da imagem de Nossa Senhora do Rosário pelas ruas de parte da freguesia, partindo da Igreja, subindo ao Outeiro, descendo a Rua do Rosário, sem chegar à Lomba de baixo, e subindo em apoteose pela Rua da Igreja até se deter, de novo na Igreja datada de 1877.  Este percurso feito sobre o asfalto, nesta data ricamente atapetado de verdes e quadrados floridos demora sempre umas três horas ou mais, com os vários andores a pararem várias vezes durante o percurso.

Os altifalantes que costumam debitar música pimba das oito da manhã até altas horas por entre postes com as suas lâmpadas acesas (todas brancas este ano em vez das habituais coloridas) e as suas flâmulas de duas cores a esvoaçarem. No cortejo processional, ouvia-se para além do falar micaelense local, algumas corruptelas de francês e inglês com micaelense nem sempre fáceis de decifrar. Depois dos andores todos, e do pálio com vários concelebrantes que eu não soube identificar além do pároco cessante da freguesia, vinham as pessoas por uma ordem hierárquica de castas sociais, das mais ricamente vestidas às mais humildemente vestidas, talvez seguindo tradição ancestral.

 Depois, há os malfadados acordes sísmicos da música tecno que ecoam na Rua do Rosário até às três da madrugada e aqui se propagam, sempre a martelar os sons do baixo… Duma empírica observação, mais vocacionada a ser analisada por psicólogos e sociólogos, convirá referir que se verificava que os jovens do sexo masculino continuavam de uma forma geral a vestir normalmente como num qualquer dia , shorts ou jeans e T-shirt, enquanto elas da mesma idade estavam todas aperaltadas, decotadas, saias muito curtas, unhas pintadas e cabelos elaborados em penteados de festa, muitas delas já em cetim lustroso preferencialmente em preto ou em sedas vermelhas. O mesmo se podia ver nas senhoras mais jovens e até à meia-idade, em que se empoleiravam com muita dificuldade em saltos altos, tipo stiletto, a que obviamente não estão acostumadas…bamboleando-se para cá e para lá sem caírem…muitas delas queriam, e tentavam muito, que as tomassem por modelos saídas de capa de revista de modas não fosse o forte sotaque micaelense ….Os homens mais bem vestidos usavam fato e gravata e privilegiavam o cinza brilhante com gravatas que não correspondiam ao casaco…obviamente forçados a usarem uma vestimenta para a qual não estavam talhados, mas a que eram obrigados. O tal fato domingueiro de que a literatura tradicional tanto fala quando se refere às aldeias e à maneira de vestir das pessoas para irem à missa… Mais parecia um desfile de trajes para casamento (até poderiam ser esses os trajes que  usavam normalmente nos casamentos e como era a festa anual isso era equivalente a um casamento…) e era vê-las a passar impantes de orgulho no seu “special look” anual com os homens atrelados a curta distância ou ao lado, cabeças bem erguidas atravessando as ruas da aldeia (já sei, já sei, os açorianos ficam todos furiosos quando digo aldeias pois pensam que aldeia é um termo inferior em estatuto ao de freguesia…, mas esta minha freguesia, queiram ou não, é uma aldeia e eu gosto dela, assim, aldeia…).

Para o Diário dos Açores (desde 2018), Diário de Trás-os-Montes (desde 2005) e Tribuna das Ilhas (desde 2019)

Chrys Chrystello, Jornalista, Membro Honorário Vitalício nº 297713 / AU 3804 [Australian Journalists' Association] MEEA/AJA]


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