Paulo Fidalgo
As meias de Natal e o valor do previsível
Desde que me lembro do Natal há uma constante nas prendas que recebo - o inevitável par de meias oferecido pela minha mãe.
Tempo houve em que aprendi a sorrir com condescendência e disfarçada desilusão à mais que previsível oferta natalícia da minha progenitora.
Achava eu, na estupidez típica de certa idade, que a Dona Adelaide encurtava caminho ao menino Jesus, armazenando na sua secreta gaveta dos afectos um stock inesgotável de pares de meias que ia distribuindo com alguma avareza e pouco pensamento pelos filhos, ao ritmo de uma vez por ano.
A visão retrospectiva que a meia biografia já autoriza permitiu-me descobrir a profundíssima sabedoria que o gesto natalício da minha mãe sempre exprimiu.
Para um homem dado à aventura do Mundo e à incerteza dos amores nada mais avisado do que manter os pés quentes e a cabeça fresca.
Não sentir nos pés a urgência que o frio e o vazio sempre impõem a um homem confrontado consigo mesmo dá-nos - a mim deu-me sempre - a certeza de que podemos transpor qualquer inverno, desde que mantenhamos a calma e saibamos regressar a casa a tempo de receber meias novas.
O par de meias natalício continua a ser esse sinal sem sofismas nem interpretações - ter um lar onde o amor é certo constitui um requisito de sanidade mental e uma certeza a que nos habituamos como se a vida fosse eternidade.
Por isso sou tentado a convencer minhas filhas de que nunca devem oferecer a um homem, de que gostem verdadeiramente, outra coisa que não seja um bom par de meias.
Porque se forem tontos ao menos salvam os pés, mas se forem inteligentes saberão que regressar a casa é, de longe, a mais venturosa das viagens.