Manuel Igreja
As vessadas
Ainda vislumbrei um pouco aquele tempo. Foi assim como se um conjunto de coisas, de circunstâncias e de quotidianos se estivesse a afastar até lá ao fundo da estrada desaparecendo na curva que iniciou a modernidade, pouco mais restando do que a ténue memória.
Naquele tempo, a riqueza de cada família e por consequentemente de uma terra, pequena vila ou aldeia, media-se em juntas de bois. O primeiro sinal de abastança de encher pelo menos uma mão, era haver um ou dois bois para ajudar na lavoura.
Lavrador médio, tinha junta de bois, aldeia rica, tinha pelo menos meia dúzia delas. Quantas mais, mais rica era a comunidade. Ainda tenho nos ouvidos, e nos olhos que a terra há-de comer, o chiar dos carros de bois e as rilheiras por eles feitas no solo.
Serviam para tudo, ou quase, os bois que bebiam água nas fontes ao assobio do moço chamado deles. Fortes, de olhar doce e pachorrentos, puxavam, sofriam, esforçavam-se. Comiam, a palha que lhes davam, mas ajudavam que nem tratores com tração a força animal.
Acartavam milho, trigo, centeio, estrume e vinho, e até a canalhada que se dependurava nas chedas segurada nos fueiros, ou nas dornas. Sem eles, haveria muito menos que se colher e muito mais que se trabalhar com mais suor a escorrer em bica.
Mas não se ficavam pelo carro que puxavam os préstimos dos bois. Também lavravam. A puxar uma charrua, faziam linhas profundas nos terrenos que por vezes mais pareciam escritos elaborados por fino artista de escrever bem sulcado na folha de papel.
Na primavera era um regalo. As leiras estavam ainda cheias dos restos das couves, os nabais ainda floriam num amarelo vivo, toda uma panóplia de ervas daninhas, mas não menos bonitas se estendia e medrava nos campos que era necessário preparar para as sementeiras.
Quem não tinha junta de bois, ou rogava o “lavrador” para lhe fazer o serviço a troco de paga, ou metia homens para fazerem a vessada cavando o solo com as enxadas que eram então a principal ferramenta no ganhar o dia para Deus dar pão, como se dizia.
Com a força dos homens ou dos animais, fazia-se um rego fundo, depois outro tapando o anterior com o que se removia. Onde até aí estava um guache multicolor, passava a estar um plano liso e muito castanho, pronto para receber que nem útero as sementes para a sua função de darem em flor antes de frutificarem.
Mas não posso findar esta minha lavra, sem antes lhes falar na merenda, depois de se me derem licença, parar um pouco a fim de saborear a lembrança que me está a ir da memória para a boca. Não está, mas é como se estivesse.
Quando a tarde primaveril ia a meio, chegava o verão sob a forma de um pastelão de ovos com salpicão que se acompanhava com broa, e claro, umas goladas de vinho tinto, pois a ingoreta estava lá para isso mesmo. Não me ocorre melhor imagem, mas se aquela maravilha redonda e amarela não era o sol num prato, não sei o que seria.
Sei é que sabia bem. Uma delícia de lamber os beiços. Por falar nisso, acho que já sei qual vai ser hoje a minha merenda. Só não convido, porque tinham de vir ajudar na vessada, e não quero que se incomodem.