Manuel Igreja

Manuel Igreja

Barco Rabelo: Uma Odisseia Esquecida

As coisas são como são. Não vale a pena, quase apetece dizer. Há pessoas, regiões e até povos, que fazem uma coisita de nada e logo levantam uma fervura que todos se admiram. Sabem valorizar o que fazem e conseguem loas em toda parte e quantas vezes, por séculos e séculos.
Outros, por sua vez, não. Sofrem, erguem obra incomensurável, arriscam a vida, mas nem conseguem que os olhem com o respeito devido, nem conseguem que se perpetue no tempo o reconhecimento do legado nem do mérito da obra feita. Obviamente que quantos aos modos como se fez, nem sombra de referências a eles. Se existem, vão-se esbatendo na espuma dos dias.
Estarão vossorias por certo a pensar neste ponto, para que porto quero eu levar este escrito sobre as coisas e loisas que se fazem e se mostram ou se deixam olvidar. Actos de bravura que não são relevados. Pois bem, não fundeio a nau porque tenho de ir em frente para puxar pelo barco rabelo e por mais a maneira como o Alto Douro Vinhateiro, o não quer ou não saber valorizar.
Hoje em dia, nesta época das coisas belas, mas efémeras, o barco rabelo pouco mais é do que um contorno nos postais ilustrados, ou uma bela embarcação de veraneio a sulcar as amansadas águas do outrora rio de mau navegar chamado Douro. Anda por cima delas e é um verdadeiro regalo para os olhos ao ponto de conseguir desfraldar as velas de qualquer alma por mais pintada que seja.
Quanto a isso está garantida a imagem da milenar embarcação que dizem os entendidos nos foi deixada pelos vikings. Os diabos eram danados de maus e esquisitos com aqueles capacetes na cabeça, mas que sabiam como se navegar pelo meio das tormentas lá isso sabiam. Não parecendo, deixaram-nos uma herança que nos estruturou quem nem bardo em vinha velha reforçado com refustas firmes e esticadas.
Foi no barco rabelo que se levaram para junto ao mar as pipas com os vinhos que iam assombrar o mundo, e foi nele que chegaram a grande parte do interior norte as mercadorias oriundas de perto do oceano. Também nele vieram pessoas que ficaram se estabeleceram e procriaram, e também nele vieram novos hábitos e novos saberes.
Nada que outros noutras bandas não tenham feito. Um pensamento posto e dito por ser o de primeiro impulso de alguém, ou de algum despeito de quem future que não, porque quer assim entender. Em parte, até pode ser. Mas e a viagem meus caros leitores ou leitoras? E a viagem?
No tempo deles, dos rabelos, pelo março o rio era mais bravio que cavalo selvagem. Era revolto a mais não poder, fundeiro e traiçoeiro como que a castigar quem se afoitava a navegá-lo. Mas os valentes iam mesmo sabendo que podiam não voltar. Acomodavam-se nas cascas de noz e ousavam. Lá longe, algures, um cálice esperava ser enchido com vinho fino.

Depois igual cabo dos trabalhos era o regresso. Não tão perigoso, mas tão ou mais trabalhoso. Quando o vento não fazia o favor de ajudar na jornada contra a corrente, havia que puxar a nau a pulso com os pés em terra mais ou menos firme. Era de força, muita força, mas trazia-se o danado de volta ao Olimpo onde se encascava o sol em forma líquida.

Agora, digam-me lá se fazem o obséquio se a odisseia se está ou não a perder entre as brumas da memória. Quanto a mim está, e a culpa é nossa. Só nossa.


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