Ana Soares
Bô! Não há como Trás-os-Montes!
Como sabem, tenho o privilégio de ter nascido e sido criada em Trás-os-Montes, mais propriamente em Bragança, e, numa altura em que a nossa região é alvo de mais um saque de serviços a que temos direito porque – em maior ou menor número – somos tão cidadãos como qualquer outro nascido em Portugal - resolvi escrever sobre o ser e sentir transmontano.
Este texto não é uma hipérbole sobre o ser transmontano porque apenas o seria se o que escrevo não fosse de verdade algo comum a todos nós. Daquelas verdades que qualquer brigantino ou transmontano, na sua região ou longe dela, sente no mais profundo do seu ser e que, mais do que sequer reparar nelas, as vive quotidianamente.
Porque há coisas que são nossas. Quem, de entre as outras regiões, sabe o que é ver o butelo e as cascas como símbolo de Carnaval, e não se importar nada de “trocar” (não só de bom grado como até com um firme agradecimento) o importado carnaval brasileiro e os seus semi-desnudos pelos completamente vestidos Caretos de Podence? Não é pior, nem melhor, é nosso e sabemos que é uma tradição que não fica indiferente a quem a conhece, com mais chocalho ou menos chocalho.
E antes do Carnaval, no Natal, se à mesa transmontana não faltam os costumes nacionais com o Bacalhau e a Roupa Velha com o seu destaque habitual, lá está também o polvo para delícia de toda a família que, como manda a tradição, não pára de saltar de casa em casa de amigos e família até que, na Consoada e com o amor e amizade como prato principal, se senta à mesa bem farta de pessoas e de comida onde há sempre espaço para mais um.
E também é verdade que entre os “chuços” que nos protegem da chuva, o “bô” que nos acompanha em cada situação ou do “amarra-te!” quando alguém se tem que baixar, o nosso sotaque não deixa ninguém indiferente quando falamos “nos nossosjolhos” e todos teimam que o repitamos até que a palavra “nossos” se separe dos “olhos”. E aí dizemos “olha esta a armar-se em guicha” e pronto; fim da conversa. Mas sabem que mais? É também o nosso falar genuíno, emotivo e verdadeiro que transmite, logo à partida, a essência da garra e do bem receber que transformam o transmontano num conviva e anfitrião sem igual.
E, faltando pouco mais de um mês para a Páscoa, todos nós transmontanos começamos a pensar no cabrito e no delicioso folar, tentando arranjar forma de conseguir estar em casa na Visita Pascal, mesmo quando se torna uma tarefa hercúlea explicar aos Patrões, no caso de quem trabalha fora da região, que a visita se faz na Segunda-feira de Páscoa e que se torna imprescindível marcar um dia de férias para essa data porque não podemos faltar. E porquê? Porque vale a pena que a tradição ainda seja o que era!
Maio é sinónimo de feira das cantarinhas, e com ela o corre corre de grupos de amigos que, por mais cantarinhas que já tenham em casa, não resistem a acrescentar uma à sua já grande coleccção. E, avançando um pouco mais no ano, tanto mas tanto que se podia falar das festas de verão que se multiplicam por cada localidade transmontana, mas cujas histórias nunca caberiam numa crónica que se pretende curta como esta…
E quem resiste às feiras do fumeiro, da castanha e da caça? Ou a trazer sempre a sua “Palaçoulo” na carteira? E quem nunca teve que explicar porque traz uma “quase arma branca” na carteira ou no carro que se chegue à frente, porque eu até sermões no Cairo já ouvi de polícias que não perceberam que “é um adereço de qualquer transmontano”…
Isto já para não falar da vindima, da matança, do fumeiro, do sair sem preocupações de segurança…
E é por tudo isto e por muito mais que ficou por dizer que Bragança é, hoje e sempre, a minha terra encantada onde mais do que sonhar podemos viver o nosso sonho e que, mesmo para quem está longe, continua a ser a nossa terra e o local para onde queremos voltar sempre que possível.
É verdade que podemos não ter tanta quantidade de ofertas em que passar o nosso tempo mas temos qualidade de vida, não temos tantos transportes públicos mas também não perdemos horas dentro deles, podemos dizer que vamos sair de casa e estar dentro de cinco minutos no centro da cidade sem fazer ninguém esperar e podemos, enfim, gozar o fruto do nosso trabalho e passar tempo com a família que nos fazem, a cada ano, viver (e não sobreviver) os nove meses de inverno e três de inferno do nosso cantinho de Portugal.
E porque a crónica já vai longa não há como rematar:
Bô! Não há como Trás-os-Montes!