Chrys Chrystello
Carta de amor ao Pico
Crónica 288 carta de amor ao Pico 19.9.19
Com os aborígenes australianos compreendi que é possível preservar a nossa língua e cultura mesmo sem ter uma escrita por mais de 50 mil anos, com os chineses descobri o valor do futuro com base nos ensinamentos do passado, com os timorenses, macaenses e tantos outros aprendi outras partilhas de saber que ainda hoje fazem parte do meu quotidiano.
Como se pode optar por ficar aqui nestas ilhas e descurar todos os mundos que existem para lá deste arquipélago? É simples, uma pessoa fica ilhanizada como Almeida Firmino em A Narcose, como se os outros mundos não tivessem importância a não ser para divulgar o segredo da existência de uma importante literatura de cariz açoriano.
Foi preciso eu descer à Praia da Viola na Lomba da Maia onde vivo, subir ao Monte Escuro e aos sempiternos verdes montes micaelenses, ver as vacas alpinistas e o mar que nos rodeia para entender a açorianidade que nos leva a escrever. Depois, é preciso viajar entre estas nove filhas de Zeus e entender os maroiços do Pico ao sabor do seu Verdelho, calcorrear o Barreiro da Faneca, pisar as areias esbranquiçadas de Porto Pim e meditar em frente ao ilhéu do Topo.
É essencial partir à descoberta de cada ilha, sonhando com Dias de Melo nas agruras e na fome dos baleeiros, reler o Mau Tempo no Canal, parar num qualquer aeroporto e entender o Passageiro em Trânsito do Cristóvão de Aguiar, ler em voz alta a poesia do Fogo Oculto de Vasco Pereira da Costa, Viajar com as Sombras ou com o Tango nos Pátios do Sul de Eduardo Bettencourt Pinto, depois de revisitar as pedras arruinadas do Pastor das Casas Mortas ou a Grande Ilha Fechada de Daniel de Sá. Escolhi estes que melhor conheço, mas há muitos autores que não só merecem ser lidos, como deveriam constar obrigatoriamente de qualquer currículo de ensino.
Aqui no Pico há nomes incontornáveis neste arquipélago da escrita, (cito por ordem alfabética os mais destacados): Almeida Firmino, Dias Melo, Ermelindo Ávila, Fernando Melo, José Enes, Judite Jorge, Lacerda Machado, Manuel Ferreira Duarte, Martins Garcia, Pe. Nunes da Rosa, Rodrigo Guerra, Urbano Bettencourt,
Tivesse eu fôlego e iria ao mítico Pico da Atlântida submersa, cujo magnetismo me fascina ao ponto de desejar, vezes sem conta, mudar de armas e bagagens para este Triângulo Sagrado onde prometo fazer imolações e outros sacrifícios nas aras do destino.
Não sendo das Bermudas este triângulo isósceles, que nunca escaleno obsceno, seria ótimo pousio final para as minhas cinzas quando chegar a estação de fazer como as cobras e trocar de pele. Despir a bela capa colorida terrena, de seis decénios, e vestir o cinzento das cinzas que seriam lançadas nesta lendária Atlântida de continentes submersos cujos picos vocês habitam.
Aqui, na Gruta das Torres senti-me um salteador da Arca perdida à sombra do Pico que, ora se esconde, ora se revela num jogo constante do gato e do rato, que entusiasma e arrebata. Sinto o sortilégio. O mágico cume tem um íman que atrai a visão e nos desconcentra, sempre insistindo para o contemplarmos nas suas mil e uma facetas alteradas a cada segundo.
Quero salientar que é uma honra estar aqui nesta ilha, feita de gente que ao longo dos séculos sempre soube arcar com todas as dificuldades e domar a lava com ferros e marrões, e amontoarem a pedra em “maroiços”, monumentos num rendilhado de jarões, traveses e bocainas. tarefa hercúlea como tantas outras que as gentes do Pico empreenderam ao longo de cinco séculos de colonização da agreste ilha, sem esquecer a luta titânica que nos seus pequenos botes travaram durante um século contra a baleia e ora descobrem novas formas de vida.
Duma das vezes que aqui estive, em pleno centro de São Miguel Arcanjo, ao andar rumo à casa do escritor Cristóvão de Aguiar deparei com uma camioneta de passageiros, estacionada, aguardando o início de nova semana de trabalho. Ali me ocorreu a ideia peregrina de como seria culturalmente interessante a aventura de “pedir emprestada” a carripana, começar a percorrer as aldeias (ditas freguesias nas ilhas) e gravar as histórias que os passageiros fossem contando. A viagem não teria destino. Duraria tanto quanto as histórias dos seus passageiros. Não se cobrariam bilhetes. Pararia em todos os locais, para que contassem histórias e lendas do local onde paravam. Que livro maravilhoso não daria esse compêndio de histórias apanhadas ao acaso daqueles que tomassem o autocarro dos sonhos. Assim me despedi da ilha prometendo voltar com mais tempo.
Termino dizendo que esta é a magia da vossa ilha que se insinua como uma amante insaciada, mulher fatal capaz de marcar os destinos de todos os homens que têm a sorte de a encontrar.
Lagoa do Paul (montagem 2009 Chrys)
Para o Diário dos Açores (desde 2018), Diário de Trás-os-Montes (desde 2005) e Tribuna das Ilhas (desde 2019)
Chrys Chrystello, Jornalista, Membro Honorário Vitalício nº 297713 / AU 3804 [Australian Journalists' Association] MEEA/AJA]