Luis Guerra
Carta desde o futuro
Em 18 de abril de 2020, fiz um exercício com alguns amigos humanistas, que consistiu em escrevermos cada um uma carta a partir do futuro, concretamente datada um ano mais tarde, tratando de imaginar retrospetivamente como se tinha desenrolado esse último período anual até àquele momento.
O interesse do exercício era não só vaticinar a projeção das tendências que já se perfilavam naquele momento, mas também lançar imagens para o futuro indutoras de comportamentos, a partir das melhores aspirações de cada um.
Partilho agora a carta que escrevi nessa altura, até para cotejar com a paisagem social com que nos confrontamos neste momento.
“Parece que foi há muito tempo, mas foi apenas há pouco mais de um ano que apareceu a pandemia que transtornou o nosso quotidiano e mudou o panorama mundial.
Ao princípio desprezou-se a ameaça, porque era um problema dos chineses e era longínquo.
Depois, quando a pandemia chegou a Itália e, a seguir, a Espanha, com centenas de casos mortais, desatou-se o medo e as pessoas começaram a enfiar-se em casa. A pressão foi tão grande que o Governo teve que avançar para medidas de confinamento domiciliário generalizadas, controlo de fronteiras, vigilância policial das estradas, ainda assim mantendo as atividades essenciais em funcionamento e permitindo curtas saídas à rua para fazer compras e exercício, bem como para ir trabalhar. Todo o comércio não essencial fechou e as atividades culturais e desportivas foram suspensas.
O confinamento generalizado criou uma condição psicossocial nova: maior isolamento e, sobretudo, um novo vazio silencioso na vida das pessoas, perturbado apenas pelo bulício familiar, em certos casos, pelas mensagens de whatsapp e as notícias sobre o progresso da pandemia.
Ao fim dos primeiros quinze dias, vividos como uma novidade, começaram a surgir os problemas pessoais e sociais, com a solidão, a destruição do emprego e a queda dos rendimentos, bem como o desespero de quem vê diariamente as cifras de mortes e infetados a aumentar.
Contudo, surgiram fenómenos novos: a priorização da vida humana e da proteção da saúde por sobre a economia; um apreço enorme pelo serviço público de saúde e o esforço dos seus profissionais; um (re)descobrimento do valor das coisas mais simples da vida e das pessoas mais próximas e queridas; uma maior recetividade a propostas de novos estilos de vida; novas redes e formas de cooperação internacional.
Ao mesmo tempo que as empresas e a comunicação social se habituavam a trabalhar neste novo ambiente, através de videoconferências, também nós fomos fazendo esse caminho adaptativo, tratando de romper o isolamento mediante propostas de trabalho pessoal partilhado por videoconferência, whatsapp ou outras redes sociais (cerimónias diárias, reuniões semanais de experiência, seminários ou workshops, intercâmbios sobre a situação atual), vendo novas possibilidades e abrindo horizontes a outras pessoas.
Quando a vida pública se foi reatando, paulatinamente e com alguns cuidados profiláticos, uma nova consciência tinha começado a emergir. É certo que as circunstâncias obrigaram a manter o distanciamento social e isso ainda se faz notar na reserva das pessoas quando se encontram, mas ao mesmo tempo há um novo sentimento de irmandade: todos queremos saber como passaram os outros pela pandemia, se perderam alguém, se estiveram infetados ou alguém próximo, como viveram esses dias de confinamento e isso não apenas entre os mais próximos, mas também quando viajamos para o exterior.
Também mudou o panorama internacional, porque as pessoas sentiram que não era aceitável a postura norte-americana de querer enjeitar as suas responsabilidades na tragédia da pandemia (cerca de 250.000 mortes), o seu individualismo e agressividade, e começaram a questionar esse modelo de vida e a procurar outras referências, aprendendo a valorar outras culturas e outras formas.
Mas o mais extraordinário foi essa nova postura pessoal, mais aberta e participativa, mais meditativa e atenta, mais comprometida e interessada, que trouxe outro entusiasmo e outra projeção aos nossos âmbitos e às nossas propostas humanistas, mesmo que não se veja ainda no que vai desembocar este processo a nível social, porque há tendências antigas poderosas que se resistem.
Hoje, rodeado de amigos no Parque de Estudo e Reflexão Minho, vejo o sol que irrompe por entre as nuvens e percebo como o ser humano sempre consegue encontrar o sentido quando as dificuldades parecem fechar todas as saídas”.
Pese embora a situação atual possa não coincidir exatamente com este relato, certo é que a política sanitária e externa norte-americana foi revista entretanto, fruto da eleição de Joe Biden como Presidente da República, e que o compromisso internacional de fazer chegar a vacina a toda a humanidade está a ganhar força, quer seja através do incremento da exportação de vacinas quer seja mediante a suspensão de patentes para permitir o seu fabrico a larga escala noutras partes do mundo.
Além disso, as cidades e a vida social começam a renascer, à medida que vai diminuindo o risco de infeção, permitindo o reencontro das pessoas e o intercâmbio de experiências e afetos.
Foi, por isso, com espanto e indignação que vimos irromper novo conflito entre Israel e a Palestina, em total contraciclo com o esforço da humanidade por salvar o máximo de vidas possível, mostrando bem como a violência é uma falsa via para resolver problemas, com a carga de destruição e ressentimento que produz.
Por isso, de todos os lados do mundo deve erguer-se um clamor de repúdio da violência que isole os promotores desta e impeça que as pessoas decentes, de um lado e outro do conflito, fiquem reféns da retórica belicista que visa arrastar tudo e todos para o confronto, em prol dos interesses de uma minoria.
E também Portugal, com o seu Governo e o seu povo, pode e deve tomar parte nesta corrente mundial, porque, apesar de tudo, a não-violência ativa é hoje um traço importante do nosso património cultural e político, que importa cultivar e disseminar.
Luís Filipe Guerra, Juiz e membro do Centro Mundial de Estudos Humanistas