Teresa A. Ferreira

Teresa A. Ferreira

Casino: 7º - a reviravolta

Viu que os quadros tinham sido recuperados, assim como outros objetos, embora se tenha perdido o rasto de alguns. Ficou em silêncio, a voz embargada, sentiu vergonha de si e, ao mesmo tempo, viu o quão grande era o amor dos pais e da Júlia por ela. Nunca a abandonaram. As lágrimas banhavam-lhe o rosto, alvo e magro. Um frio no estômago visitou-a – era ansiedade. Tomou um ansiolítico com água, tal como aprendera na clínica, e sentou-se no sofá, respirando calmamente.

A sua querida Júlia preparara o seu prato favorito: serviu floretas com salada camponesa, caldo verde, lulas recheadas a acompanhar com puré e brócolos. Fez bolo de amêndoa e pudim francês para sobremesa.

Os pais ficaram responsáveis por ela para que tomasse a medicação e não faltasse às injeções mensais, nem às consultas com o psiquiatra, nem à psicoterapia.

O cartão multibanco não voltou a vê-lo. Saídas apenas com os pais e muito cuidado com as amigas. Os pais sentiram que tinham de reeducá-la para viver no mundo sem adições.

A princípio não aceitou que desenvolvera a perturbação bipolar. Achava que andava tudo louco. Com a introdução e ajustes sucessivos da medicação, para a estabilizar e ter qualidade de vida, passou a aceitar melhor a doença ao fim de muitos meses.

Além das consultas, com o psiquiatra e a psicóloga, fez também um programa de psicoeducação para a doença bipolar, onde conviveu, durante 20 sessões, com outros doentes com histórias de vida diferentes, mas que tinham em comum o facto de sofrerem de perturbação bipolar. Nem todos tinham um historial de adições, mas não é incomum. Alguns relataram que consumiam drogas quando estavam em depressão major e, quando isso acontecia, tinham de ser internados, por ficarem descompensados; outros, que não podiam ter cartão multibanco porque faziam compras compulsivas; outros, abusavam do café e depois não conseguiam dormir; outros, consumiam álcool em excesso; outros, no estado de mania (euforia em excesso), diziam que tinham visões e sentiam-se com poderes especiais; e tantas outras situações que escutou aos membros do grupo. A maioria dos doentes tinha desenvolvido a doença devido a stress traumático e a sua proveniência era hereditária. No grupo havia gente jovem, de meia-idade e com idade avançada. Gente com as mais diversas profissões, níveis de escolaridade e intensidade da doença. Teve a oportunidade de perceber que não era a única a sofrer desta doença e que o apoio familiar era indispensável para ter uma vida estável e de qualidade. Soube que o consumo de álcool ou de drogas eram fatores desencadeantes de um novo episódio e que tal a conduziria ao internamento.

Nas primeiras sessões não falava – entrava muda e saía calada -, mas com o tempo foi ganhando confiança e relatou algumas situações que viveu ou que a incomodavam. Conheceu pessoas com quem pode desabafar, assim como a própria equipa médica que conduzia as sessões. Foi uma aprendizagem muito gratificante que fez com que deixasse de ser uma pessoa revoltada e passasse a colaborar de forma espontânea.

Criou um grupo de autoajuda entre os colegas do grupo de psicoeducação para a doença bipolar, que lhe dava algum retorno em termos emocionais. Reuniam de quinze em quinze dias. Finalmente sentia-se útil e, em simultâneo, que ali podia desabafar os seus medos e angústias. Construiu amizade com alguns membros do grupo.

Os meses iam passando e a Gabi mostrava-se estável e confiável, “mas nunca fiando” – diziam todos em casa.

De vez em quando, ia fazer análises à Unidade de Saúde Mental para a sua equipa médica saber se ela tomava a medicação, perceber como estavam os níveis de lítio no sangue e outros indicadores.

Devido à formação dos pais, à força, fé e foco que tinham em recuperar a filha, foi possível atingir bons resultados.

Com o passar do tempo, foram dando autonomia e liberdade à Gabi, mas vigiando-a: “os vícios podem voltar, se lhe dermos a oportunidade”.

Durante o tempo em que esteve presa, estudou com garra. Os pais levavam-lhe as matérias para ela estar ocupada. Quando saiu foi fazendo os exames e conseguiu concluir o curso com excelentes notas.

Certo dia, em Valpaços, estando a Gabi numa esplanada ao sol a tomar um sumo de laranja, bem fresquinho, reparou que um jovem a olhava de outra mesa. Teve medo, muito medo. Não queria que nada nem ninguém perturbassem a paz que com lágrimas de sangue conseguira. O jovem aproximou-se dela e perguntou-lhe se era a Gabi. Confirmou anuindo com a cabeça – a moça extrovertida tinha ficado muito mais tímida. Pediu se se podia sentar. A Gabi, sem saber o que dizer e quase em pânico, fez um gesto com a mão direita, apontando para a cadeira livre, que estava à sua frente.

– Não te lembras de mim, Gabi?

– Não, não me lembro – tinha ficado mais gélida do que um “iceberg”. De repente…um sem-número de situações possíveis passaram-lhe pela cabeça – Quem seria o rapaz que estava mesmo à sua frente?

(Continua…)

© Teresa do Amparo Ferreira, 09-04-2024
    𝙉𝙖𝙩𝙪𝙧𝙖𝙡 𝙙𝙚 𝙏𝙤𝙧𝙧𝙚 𝙙𝙚 𝘿𝙤𝙣𝙖 𝘾𝙝𝙖𝙢𝙖,
    Mirandela, Bragança, Portugal.


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