Fernando Campos Gouveia
Catalunha
Filipe VI demonstrou certamente que é o rei de Espanha, mas a dramática situação política em que vive o que ainda é o Reino de Espanha exige outra altura de análise e de intervenção política. Valeria a pena fazer uma análise cronológica do que tem sido a convivência entre uma Catalunha com forte sentimento nacional, cultura e língua próprios numa Espanha centralizada (apesar das autonomias regionais).
O problema criado na Catalunha não começou no dia 1 de outubro e haveria que procurar as suas raízes bem mais longe. Simplesmente, a desastrosa intervenção das autoridades de Madrid e a fundamentação em que a sustentaram são tão superficiais que desafiam a lógica das relações internacionais e dos princípios do direito internacional.A ordem pública internacional, com efeito, não é apenas a garantia das soberanias existentes, mas acolhe também as aspirações legítimas de soberania de entidades emergentes.
As aspirações nacionais da Catalunha constituem um problema entre duas entidades distintas: uma nação não independente que quer fazer-se ouvir e um Estado soberano que quer manter-se incólume e fecha os ouvidos. E este problema não pode ser resolvido invocando a lei fundamental de uma das partes. Ou seja: um conflito de soberanias é essencialmente político e uma constituição, que é o plasmar de um consenso datado no tempo, não pode resolvê-lo. A constituição é o resultado de consensos e não a garantia deles, já que os consensos são, por natureza, dinâmicos.
Foi este, a meu ver, o erro de Madrid ao fazer intervir os tribunais na solução de um problema político e ao tomar como razão legitimadora de uma intervenção da força repressiva do Estado a decisão dos mesmos tribunais. A intervenção era, aliás, desnecessária para Madrid. Se os tribunais confortavam a sua posição, bastar-lhe-ia ignorar o referendo, legalmente nulo. Mas Madrid teve medo de que se contassem votos, e foi esse o motivo último da sua intervenção brutal.
As autoridades da Catalunha provocaram a situação atual? Possivelmente sim. Não tenho dados que me permitam analisar todos os passos desta escalada, mas, nestas situações, há sempre a tentação de protagonismos pessoais tirarem proveito da emoção da rua. Mas era justamente prevendo isto que os responsáveis do Estado deviam ter agido há muito tempo através do diálogo e, se esse não fosse possível diretamente, através de mediação discreta e adequada. E foi esta igualmente a falha de Filipe VI, muito embora possa ser aduzido em sua desculpa o facto de o seu reinado ser recente. Não se imagine que não havia lugar para uma intervenção do Rei, símbolo e garante da unidade do Estado, numa discussão de rivalidades nacionais. As soluções de organização de um Estado em que convivem várias nacionalidades são extensas e o Rei teria estado em boas condições para promover a discussão pacífica de todas as possibilidades. Agora, temo que seja tarde demais. Filipe VI terá afirmado a indivisibilidade do Estado espanhol, mas terá perdido ao mesmo tempo o coração da nação catalã.