Manuel Igreja

Manuel Igreja

Cidades sem Tempo e sem Substância

Uma pessoa minimamente com bom senso e um mínimo sentido crítico, vê a notícia na televisão e sente-se revoltada. Sente que existe uma culpa individual e coletiva pois a situação em apreço não é única, não resulta somente de uma atitude individual, mas sim e também de uma série de contextos que a permitem.

Refiro-me à vergonha que nos mostraram e que diz de um apartamento na baixa de Lisboa, espaçoso que basta para albergar meia dúzia de pessoas, mas que está alugado a trinta que nele se apinham como sardinhas em lata, só que ao contrário delas, estão vivas e com necessidades básicas.

Tenho quase a certeza de que a proprietária, se me não engano, é uma mulher, ia escrever senhora, mas achei melhor não, depois de contar as notas da renda que é para cima de um ror de euros, faz alguma penitência e diz uma rezas para acalmia da alma, dando de barato que ainda lhe resta esse fluir interior e um sentido de culpa mesmo que mínimo.

Dormirá depois sossegada nem que seja à custa de umas mezinhas naturais ou químicas. Não acredito que alguém com consciência que baste, se sinta bem sentar-se à mesa para comer sabendo que para ela estar bem, um suponhamos, dezenas de seres humanos vivem o quotidiano sem espaço digno, sem espaço para se acomodar e sem correr o risco de cair em cima dum companheiro de partilha caso lhe dê um desmaio.

Qualquer ser humano tem necessidade de ter um canto. Tem o dever de ser decente, mas também tem o direito de receber decência. Bem sabemos que infelizmente no tempo desta nossa modernidade, milhões estão a léguas disso, mas será da natureza humana o destruir muitas coisas para construir algumas ao sabor da corrente e da maré, que é como quem diz, ao jeito de quem pode e manda.

Mas volvendo ao caso da notícia. Porque vemos, ouvimos e lemos, podemos e devemos criticar isoladamente o caso. Não adiantamos nada, nada resolvemos a não ser o alívio que se sente, mas urge que dele se fale, pois não é único, e malgrado a nosso sorte como país, é mais um no meio de milhares. É só mais um sinal do desmando que ao longo de décadas provocou que as nossas cidades à parte a beleza monumental e natural se tenham transformado numa horrível selva.

As urbes europeias viraram pasto de predadores que se alimentam do lucro rápido e fácil permitido pelo poder político que deslumbrado pela riqueza que advém das bordas da maré, esqueceu-se ou não soube ver, que assim se faziam as cidades para os outros, que assim se matava a cidadania, que assim se espalhava o medo, que assim se criavam as condições para o desespero que instalado que é, sempre leva a finais muito maus.

Quer-me parecer que na Europa se chegou a essa conclusão e se começa a agir, mas como sempre e em tudo o resto, em Portugal continua o deixar estar para se ver onde vai dar, pois enquanto o pau vai e vem, folgam as costas e vai a economia fluindo e algumas ruas florindo porque se requalificam as ruínas que durante décadas nos envergonhariam caso tivéssemos uns pingos de vergonha, e um pouco de respeito pela memória dos que nos antecederam.

Sem capacidade de planear e muito menos de executar, sempre à procura de proventos seguros e sem grandes exigências de trabalho, assim que o turismo ressoltou em ser o mais importante setor de atividade apesar de não ser estrutural como é de sua natureza, nada tardou que as casas deixassem de ser residências de cidadãos de cá, para serem alojamentos de pessoas de muitos sítios.

Mais uma vez prostituímo-nos. Não nos demos a possuir, mas alienamos a nossa essência, esquecemo-nos que devemos ter vizinhos e sermos vizinhos de alguém, dobramo-nos a quem se pavoneie com muitas notas no bolso, cedentes pecuniários, condenamos o mau que outros fazem, sabendo que faríamos o mesmo em circunstâncias iguais.

Perdemos a noção do limite entre o certo e o errado. Não exaurimos a capacidade de exigir porque nunca a tivemos. Só pedinchamos e só esperamos muito espertos acesso às sobras das obras dos outros.

Depois disso alardeamos para que nos envejem, habitando em cidades sem tempo e sem sustância.



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