Luis Guerra
Coincidências significativas
Recentemente, deparei-me com uma série de situações, no espaço de poucos dias, em que se abordava, de uma forma ou de outra, o tema do regresso ao passado.
Em primeiro lugar, foi num convívio entre amigos/as, há muito separados pela situação pandémica, em que se desfiaram memórias comuns e individuais, preenchendo quase todo o serão, deixando em falta referências aos planos para o futuro.
Depois, foi no filme “Reminiscência: Fragmentos do Passado”, de Lisa Joy, atualmente nas salas de cinema, no qual, num futuro imaginário, existirá a tecnologia para recuperar memórias e projetá-las tridimensionalmente, possibilitando, inclusivamente, optar por ficar a viver imerso em recordações felizes ou seguir adiante.
E, finalmente, foi no livro de Toshikazu Kawaguchi, “Antes que o Café Arrefeça”, em que se acompanha as regressões de quatro mulheres a momentos determinantes das suas vidas para poderem ressignificar esses instantes.
Todas estas atividades foram prazenteiras e gratificantes, mas deixaram uma suspeita acesa no meu interior: será que esta coincidência é significativa? E, em caso afirmativo, o que nos está a querer dizer?...
No geral, a tendência nostálgica tem sido interpretada como uma reação à sensação de perda da própria “paisagem de formação”, entendida esta não apenas como o conjunto de objetos tangíveis e intangíveis (valores, crenças, ideais felicitários, etc.) que operavam na etapa de formação de cada um de nós e que foram desparecendo ou sofrendo transformações, mas sobretudo como um tom afetivo geral, uma sensibilidade epocal não concordante com a sensibilidade da época atual[1].
Na verdade, não recordamos os acontecimentos exatamente como eles foram, mas sim como memórias estruturadas, de tal modo que os factos passados surgem agora como representações mentais envoltas num dado tom afetivo que nos é familiar e até mesmo identitário. Nessa medida a dinâmica acelerada do presente é sentida como uma ameaça à própria identidade, ainda que ilusória.
Paralelamente, essa tendência para regressar ao passado pode também ser vista como um movimento psíquico pendular em que a consciência se refugia na memória, tomada pelo temor em relação ao futuro e o desgosto pela situação presente, contraindo-se, e se esquece ou desliga do propósito evolutivo, de direção expansiva.
É dessa atitude que se têm aproveitado alguns ideários reacionários que propõem o regresso a um passado mítico, que promete segurança e estabilidade, ocultando o facto de que a humanidade transformou essa situação anterior justamente para fugir da dor e sofrimento que a mesma causava à grande maioria.
Mas, em todo o caso, há certamente uma razão ponderosa para que a consciência faça esse movimento regressivo, transitando entre tempos e deixando de estar esperançosamente focada no horizonte futuro.
Na experiência pessoal de cada um tem havido certamente momentos assim, em que um projeto inicialmente acarinhado se torna depois, ao longo do seu desenvolvimento, pesado e sem-sentido, acalentando um desejo de mudança. É difícil perceber que fatores intervêm nesse processo de desencantamento, mas é muito provável que o mesmo se fique a dever, para além das dificuldades de implementação, a desvios em relação às aspirações mais profundas que estavam na sua génese, mormente em função da realização primária de interesses mais secundários, mas de forte sedução, pela sua carga compensatória e valoração social: o prestígio, o sexo, o dinheiro, etc. Podemos sempre abandonar esses projetos para abraçarmos outros, mas se não nos reconciliarmos com a experiência, compreendendo com profundidade o sucedido, é possível que a história se volte a repetir.
Assim sendo, também no processo histórico se chega às vezes a determinadas “enseadas” em que se sente a necessidade de parar e equacionar as condições em que se quer viver, questionar o sentido da construção social e procurar redirecionar a mesma em função de um propósito evolutivo que resolva as contradições acumuladas e supere o sofrimento causado.
Nessa medida, regressar ao passado pode ser salutar, não para recuperar etapas históricas superadas, mas sim para produzir uma reconciliação que permita avançar para o futuro em paz e com esperança. Uma reconciliação que não só reconheça, mas também repare duplamente, os agravos causados a outros, nomeadamente às minorias e povos discriminados, e sem a qual não será possível continuar a trilhar a direção do futuro coletivo. Uma reconciliação que limpe a mente de todo o ressentimento, em relação a si mesmo e aos outros, e que propicie a formulação de novos projetos humanizadores que sejam a tradução das melhores aspirações de cada indivíduo.
Assim, talvez estas coincidências sejam o sinal de que este é um desses momentos e que essas incursões no passado sejam a forma de se fazer esse balanço e de se reencontrar uma vez mais o sentido tantas vezes perdido e tantas vezes reencontrado ao longo da História[2].
[1] Cfr. Luis A.Ammann. Autoliberación, Epílogo. México D.F. Plaza y Valdés, 1991.
[2] Cfr. Silo. Obras Completas: Cartas a meus Amigos, Primeira Carta, Cap. 7. www.silo.net