Manuel Igreja
Conto de Natal: A Promessa
- Quando Deus quer, ninguém atrapalha. Costumava dizer a mãe da menina que não sabia que as pessoas morrem até que se lhe finou o irmão mais novo ainda mocinho. Sempre que isto escutava, sentia nascer-se-lhe um sonho logo tido como bem capaz de a ajudar a honrar a sua vida. A progenitora era firme e serena, sabedora e motivadora, e ela acreditou.
Ainda pouco tinha passou dos vinte anos, mas a vida já lhe dera agruras que bastem para por vezes se lhe tornar triste o semblante, mas nunca ainda pelo menos, ao ponto de lhe esmorecer o brilhozinho nos olhos, por onde tantas vezes mais parece que lhe saia a alma for força de se expressar.
Tinha um sonho e zarpou. Vivia lá no seu canto, onde numa corrida intensa e breve logo se vê o fim do caminho que antecede o princípio onde caiem os que não fazem ponte para o horizonte sem fim, mas a inquietação e o anseio de ir mais além foi como vento forte em vela desfraldada de barco que sabe onde fica o porto que se deseja.
Partiu pois então em demanda da aventura buscando um destino diferente e melhor do que aquele que era inevitável para os que não partiam, porque não podiam, ou porque não ousavam. Quis renegar uma vida de triste fado para si, mas também para os seus num anseio que lhe incomodava o sono, mas não lhe cerceava o sonho.
Nada e criada numa pequena vila de província, no interior quando este ainda não tinha atingido a condição de arrabalde da cidade grande, estudou por lá até ao limite disponibilizado. Aprendeu letras e números, alguma ciência, e literatura muito pouca, mas queira ir mais além na descoberta e na conquista que sempre estruturam as mentes e os corpos.
Sabia, tinha a certeza que podia ir mais longe e mais alto. E queria. Queria muito. Com fé. Tinha a perfeita noção, que não podia nem devia deixar-se ficar por ali a ser esmagada pela opressão impercetível, mas terrível dum mundo onde o próprio som do silêncio incomoda e por vezes mata.
Aventurou-se com algum temor, mas com a confiança a brotar-lhe que nem as rosas do canteiro pela Primavera. Antes de partir, porém, foi até à Igreja da sua terra onde gostava de entrar quando lá não estava mais ninguém. Nesses momentos sentia como que um aconchego que a elevava.
Nutria uma muito especial relação com S. Pedro o padroeiro da terra ao ponto de com ele se aconselhar e também desabafar. Era-lhe muito querida a imagem do santo rosadinho e com uma chave na mão. Cria mesmo que com ela todo o mundo se abria.
A moça tinha uma linda voz. Chegava mesmo a tentar rivalizar com os pintassilgos no canto. Eles com as suas melodias, ela com as suas cantigas de embalar e de encantar. Um homem que sabia de aves dizia até que as cotovias a invejam no cantar. Sabia que a sua voz era um dom natural que lhe competia desenvolver e aperfeiçoar.
Na hora da despedida, falou com S. Pedro e fez um trato. Prometeu-lhe que se ele a ajudasse na sua nova vida na cidade, em que se incluía a vontade de cantar mais e melhor, todos os anos na missa de Natal ela cantaria virada para ele a ave-maria de Schubert. Ele aceitou e registou, dizia ela convicta.
Na cidade, serviu de criada, serviu de balconista, mas foi estudando artes e saberes. Saía de casa de madrugada, e regressava já noite fechada. Era nova e desenxovalha e lutava. Como a Luísa da canção, subia, e subia a calçada. Chegou a levar a lancheira com lá dentro quase nada. Mas ia triunfando e fez-se mulher notada, e cantava.
Mostrou a sua voz e encantou. Conquistou sucesso e chorou. Os marotos dos olhos rasavam-se-lhe de água quando sentia as melodias que vindas da alma lhe saiam lá dentro encavalitas nas cordas vocais. Brilhou, mas não olvidou nem o torrão de nascimento nem a promessa feita ao santo de sua predileta devoção.
Todos os anos a Missa do dia de Natal marcava presença e cantava, simplesmente, sem mais nada que a sua voz acompanhada pelo vibrar das cordas de um violino tocado com mestria por um amigo e conterrâneo, solidário no cumprir da promessa feita. Não me atrevo a afiançar, mas o mais certo é ele igualmente se ter chamado ao Santo com igual trato.
O narrador nunca assistiu ao sublime encanto, mas lamenta. Dizem que valia e muito a pena. Chegou a correr fama de que quando ela ali cantava, no céu se viam alguns vultos a arredar as nuvens para ouvirem melhor o que o menino depois mulher melodiava.
Uns acreditavam e juravam que viam, e outros não viam, mas pelo menos duvidavam. A mãe dela, não estava muito em crer no que diziam. Mas o que afiançava jurando pelos olhos que a terra há-de comer, era que no presépio, o Menino Jesus se encantava. Bastava vê-lo a mexer as perninhas e os bracinhos num contentamento que só Deus sabia e sabe.
Quanto a ela, foi Ele que não deixou que alguém atrapalhasse.