Manuel Igreja

Manuel Igreja

Conto de Natal : Naquela Noite

Ninguém sabia bem porquê, mas toda a gente o conhecia pelo nome de Balalaique. Nem ele próprio. Aliás, não sabia isso nem sabia muitas outras coisas que interessam ao comum dos mortais, se calhar porque não era deste mundo.

No entanto, sabia outras. Se não sabia, pelo menos sentia-as pois nunca ninguém o ouviu queixar-se fosse do que fosse apesar parecer de esvoaçar quem nem folha de planta tocada pela brisa ou a flutuar na água de ribeiro feito fieiro. Cirandava ao deus-dará.

Era livre. Isto digo eu, que nunca lhe consegui ler o pensamento e muito menos a alma, apesar de ela lhe estar à flore da pele caiada de branco como sucede com a essência daqueles em que a malícia não encontra chão para medrar.

Nuns dias aparecia aqui, noutros aparecia ali, sem que as condições de invernia ou de canícula de escaldar lhe impedissem o andar. Não buscava nada, por isso parecia andar como sendo dono de tudo.

Uma coisa sabia-se certa, no entanto. Não havia noite em que não se acoitasse no alpendre da capela da Senhora das Aveleiras erguida no sopé do monte de São Domingos com o fito de delimitar e abençoar a estrema do Doiro terra de vinho, rio e de gente, com a Beira, terra de soitos, de pomares e também de pessoas de igual jaez no labor.

Pela época do Natal, algumas pessoas por bondade, ou para contrabalanço na consciência que sempre dá jeito para conquista de recanto futuro no paraíso, tentavam dar-lhe acolhimento e melhorar-lhe a consoada mais não fosse com as migalhas sobrantes da mesa familiar.

Era escusado. Negava sempre os oferecimentos. Não podia nem devia deixar a Santa sem a sua companhia nessa noite especial. Dizia na recusa. De resto, nem ela, nem quem os acompanhava. Jurava a pés juntos, que nessas horas se lhes juntava uma vaquinha e um burrinho para quem ele tratava de apascentar com o que recolhia nas hortas em redor.

Dando-lhe o desconto que sempre se dá aos que se têm por menos ricos de miolos, quase todos zombavam encolhendo os ombros e alimentando-lhe o dizer dessas coisas tidas como devaneio por falta de tino. Divertiam-se tendo-o por diminuído por ser filho de um deus menor unicamente capaz de dar conteúdo e forma a simplórios.

Volvidos estes anos, tenho para mim que nunca ele se teve como injustiçado, e que todo ufano se sentia em alimentar ilusões alheias, sabendo-se senhor do tempo e donos dos ventos como o é qualquer incansável peregrino nos caminhos que vão dar ao palácio da felicidade.
Mas digno de espanto até mais não foi um dia, que é como quem diz, uma noite de Natal. Uns mariolas resolveram ir desinquietar o Balalaique no seu poiso. Mais não fosse, tiravam a teima e acabavam com o que quase era já um mito a virar fábula. Vá lá saber-se.
Espanto. Sorrateiros chegaram-se ao pé da porta da capela. Mas do procurado nem sinal. Chamaram por ele, fizeram ecos de vozes que chegaram longe, acordaram-se as aves, mas nada, além do repentino parar do trovejar. A lua brilhou mais, afirmaram que o sol se mostrou, mas do tido como desinfeliz, nem um mero odor.

Conformados e temerosos resolveram regressar à aldeia a umas escassas centenas de metros e onde todos dormiram consoadas e contentes com as prendas calhadas nos sapatinhos ao pé da lareira. Parecia ser uma Noite de Natal igual a tantas outras, mas não foi.

Ao que se diz que eu já não me recordo, mas sei porque passou de boca em boca, é que a dado momento se ouviu uns sons vindos dos lados da capela da Senhora as Aveleiras que mais pareciam um recém-nascido a chorar, o zurrar de um burro que parecia um cantar, e o bafo de uma vaca quente de derreter o nevão.

Mas melhor, em volta da lua bailavam uns seres alados a cantar, todos de branco, mas sem traços de corpo e rosto definidos. Isto, excepto um, que era mesmo o Balalaique em figura.
Como não há longe nem distância para o bem-querer, e porque as asas da nossa imaginação nos podem levar para onde cada um quer, se calhar era mesmo ele. Não acha?


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