Manuel Igreja

Manuel Igreja

Conto de Natal : O Velho e o Triciclo

Ainda o conheci. Morreu era eu já espigadote. Como sempre o vi como pessoa idosa, estou em crer que o seu último respirar sucedeu com ele a rondar os noventa anos, ainda que antigamente a velhice mostrasse a sua cara muito mais cedo. Era-se velho mais novo.

O que posso garantir é que ficou célebre. Deixou nome, não por um qualquer acto de especial valentia, pois foi um homem normal dentro de um viver honrado e sossegado. Aquietado até por entre a labuta nos terrenos, as idas à missa e à feira. Nos entretantos, uns copitos para alegrar em dias que não eram dias.

O que o tornou digno de registo e de ser falado em memória, foi um triciclo que teve e que nunca largou. Mesmo já durante o tempo de adulto. Não que o utilizasse enquanto homem de barba rija e feita, mas porque o tinha sempre por perto e estimado que nem jóia rara herdade de antepassados.

Manteve-o ao longo dos anos que nem um brinco. Estimado que nem prenda recebida de quem muito bem se quer, e se guarda junto ao coração para que se não partam os laços que atam as amizades e os amores que como dizia um certo poeta devem ser infinitos enquanto duram. Podem não ser eternos, porque são chamas que por vezes se apagam, dizia também o mestre das palavras tecidas.

Tinha para ele, e afirmava-o a pés juntos, que aquele triciclo era muito especial e que nem sequer era feito de material havido no planeta Terra, coisa que de que ele nem sonhava o tamanho ou o que continha. Mas fazia fé nisso, ao ponto de se aprontar a morrer sem negar. O triciclo era um milagre do Menino Jesus que lho ofertou num certo Natal de há muitos anos.

Disse eu que ele não sabia de que a Terra é feita e nem da sua largueza, mas já nem sei que diga. Sucede que a paginas tantas ele se punha a contar as viagens que fazia no triciclo quando era moço, e descrevia coisas nunca vistas nas redondezas.

Afirmava mesmo que algumas só se podiam enxergar lá de cima junto às nuvens, quase, ou lá perto. Seria voadora a máquina, sabe-se lá. Perante esses relatares, muitos encolhiam os ombros e davam-nos como um pouco ensandecido ou com imaginação a mais. Dizem que era mais quando estava pingueiro que se lhe dava para contar acerca desses passeios e seus encantamentos. Seria.

Morreu de velho e em casa, e como sempre quis com o triciclo ali bem ao lado do leito onde expirou serenamente e sem dor. Teve uma morte santa, como diz o povo na sua imensa sabedoria dada pelo passar dos anos e pelos arrascanhares da vida.

Nada de anormal, como se vê. Mas ficou um mistério. Nunca mais alguém viu o triciclo ou algo por ele. Levou sumiço completo. Uma pessoa não acredita, mas há quem pense, mas não diga, que o velho o levou com ele.

Caso o triciclo fosse feito de coisas que a gente não conhece, se calhar desmanchou-se, imaterializou-se e foi junto dele na barca nos leva a todos para a outra margem.

Com um jeito, anda o velho agora gaiato destemido, a rolar no triciclo por entre as nuvens quando o céu não está azul para que se não veja. Ainda um dia me vou pôr a olhar para lá especado para ver se o vislumbro.

Caso vossemecês o vejam, digam-me para eu contar.


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