Luis Guerra

Luis Guerra

Convergência na diversidade

Saltando de escala, transcendendo fronteiras, no meio das notícias sobre a Covid-19, os incêndios e a pré-campanha eleitoral, os acontecimentos no Afeganistão impõem-se à nossa perceção.

Para mim, que tive como uma das leituras deste verão, o belo livro de Khaled Hosseini, “Mil Sóis Resplandecentes”, a sensação de surpresa é acentuada pela nota final de esperança dessa obra, com o afastamento dos taliban do poder.

Percebe-se, por isso, a consternação com que o rápido regresso ao poder dos taliban, após o anúncio da partida das forças armadas norte-americanas, foi recebido pela população urbana afegã, nomeadamente a feminina, sobretudo da capital e das etnias minoritárias (tajique, uzbeque, hazara, etc.).

Porém, não se pode perder de vista, por um lado, que, para todos os efeitos, o Afeganistão era um território ocupado por uma potência estrangeira, pelo que a revolta taliban se pode interpretar como um fenómeno de resistência nacional e cultural e, por outro, que a persistência e o rápido avanço daqueles só se pode explicar com o apoio de uma parte significativa da população, designadamente da etnia maioritária pashtum, muito embora não tenham seguramente faltado os apoios financeiros e logísticos externos para sustentar o esforço de guerra ao longo de vinte anos.

Desaparecido o sustentáculo de um regime sem raízes profundas na maioria do povo afegão, este desmoronou-se por completo, deixando vazio o poder e repetindo-se uma história já vista.

Nesse sentido, pese embora a retirada norte-americana possa ter sido mal planeada ou mal executada, como se tem vindo a afirmar, o problema começou logo com a invasão precipitada daquele território, movida pelo desejo de vingança dos acontecimentos de 11 de setembro de 2001 em Nova Iorque, que não perspetivou as consequências a médio e longo prazo dessa iniciativa e desprezou a fama do Afeganistão como “cemitério de impérios”.

Agora é o tempo da aprendizagem com a experiência e da diplomacia.

Desde logo, importa concluir que a violência bélica é uma falsa solução para os conflitos, deixando um rasto de destruição indelével e contribuindo para um ciclo infinito de ressentimentos e vinganças.

Nesse sentido, como já advertia Silo em 2006, as urgências do momento passam por retirar as tropas invasoras, devolver os territórios ocupados e desmantelar os arsenais existentes, especialmente os nucleares, a fim de se assegurar a paz e a sobrevivência da espécie humana e do planeta.

Por outro lado, é necessário abrir canais de diálogo com os poderes de facto no Afeganistão, ajudando a promover a reconciliação nacional e a atitude não-violenta na governação, de tal modo que se possa tratar os outros como se quer ser tratado, evocando as suas próprias referências culturais e religiosas.

Depois, virá a questão da legitimação democrática e da arquitetura do sistema político, mas a verdade é que tem que ser cada povo a encontrar o seu caminho para superar a dor e o sofrimento, no quadro do direito à autodeterminação e do respeito pela vida e a dignidade humana.

As propostas do islamismo político radical parecem inscrever-se numa tendência contemporânea mundializada de procurar num passado mítico o resgate de uma felicidade perdida - face à sensação de vertigem produzida pela aceleração histórica e ao concomitante temor do futuro -, neste caso corporizado no regresso à pureza do Islão, como se tivesse sido o desvio em relação a esta que explicasse o declínio dos anos dourados dos califados medievais e a posterior subjugação dos povos muçulmanos pelo imperialismo ocidental e o seu estilo de vida.

Desse ponto de vista, a aplicação da Sharia seria o meio de garantir um modelo social virtuoso e, por tabela, o prémio divino, segundo a respetiva fé religiosa, mas, ao mesmo tempo, noutro plano, trata-se de recorrer ao mais sagrado da própria cultura para resistir à globalização uniformizadora que corrompe os seus valores e costumes.

Certamente, o tempo encarregar-se-á de desmontar essa crença, desde logo pela contradição social que a imposição dogmática e violenta de regras de conduta sempre produz, alimentando um forte desejo de mudança no seio da sociedade.

Mas a compreensão destes fatores evita a análise simplista que procura reduzir tudo a um confronto entre “bons” e “maus”, esquecendo que, na perspetiva dos insurgentes, certamente discutível, o seu projeto político-religioso é entendido como um benefício para a população afegã, muito embora não sejam de descartar as ambições pessoais de poder de alguns dos seus líderes. 

É, portanto, na tradução ou interpretação que se faz dos sinais do sagrado que reside a chave para ultrapassar a violência religiosa, já que, sem o filtro da bondade, se perde o essencial das experiências místicas que fundaram as diversas religiões[1]. Em todo o caso, é a partir dessas mensagens que chegam da profundidade da mente, em momentos de forte necessidade ou de humilde busca, que se pode reencontrar o sentido da construção humana comum, apesar da diversidade pessoal e cultural.

Não se trata, pois, de impor uma particular mundividência a outros, mas sim de encontrar os caminhos convergentes, a partir dessa diversidade de experiências, que se traduzam na progressiva libertação do ser humano da dor e do sofrimento.

 

Luís Filipe Guerra

Juiz e membro do Centro Mundial de Estudos Humanistas

[email protected]

 

[1] Cfr. Silo. Inauguração da Sala da América do Sul. Disponível em http://www.silo.net/es/present_milestone/index/4

 


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