Manuel Igreja
Conversando acerca da água e do vinho
O ano ia dos mais secos de que havia memória. Com o fevereiro para cima de meio e já com o março a pôr-se na dianteira da fila para entrar, os ribeiros não passavam de fieiros que quase não corriam. Deviam ser verdadeiros cavalos de água a galgar, mas iam pachorrentos, tristes, quase charcos.
As autoridades competentes mostravam-se preocupadas. Muito preocupadas. O verão tinha sido um inferno de calor e de fogo que levou tudo a eito, o outono tirando as cores quase não se sentiu, e o inverno quase defunto por lhe se acabar o prazo, fazia gala em se travestir de primavera.
Chuva quase nem pingo. Tirando um dia ou outro que vinha a rodos e em pouco tempo, escasseava que nem vinho em túnel só com borras, fazendo crescer as preocupações em relação aos meses que se iam seguir.
- Se não fosse pecado, quase se podia dizer que o S. Pedro lá em cima devia andar sem grande tino. Para uns lados lá para os países mais próximos abria a torneira de um modo que inundava tudo. Era um mar de água nas ruas das cidades e nos campos. Por aqui, por Portugal abençoado, ou se esquecia, ou a torneira não abria. Estaria emperrada. Isto dizia o homem já idoso ao habitual companheiro no desfiar de conversas ao jeito de filme de memórias.
- Vistas de outro modo as coisas assim à primeira tinham vantagens, mais não fosse para o veraneio. Retorquiu o interlocutor habitualmente citadino e esporadicamente aldeão por gosto.
- Está certo. O pior é o resto. Por vezes dá a ideia que as pessoas se esquecem da importância da água. Bem sei que como diziam os antigos, a chuva e a morte nunca se pedem, mas olhe que há alturas em que não há outro remédio.
- Por vezes esquecemo-nos realmente que para tudo há uma época certa, coisa que hoje em dia não é assim tão evidente. Depois como abrimos a torneira e ela deita água, tendemos a esquecer-nos da importância do líquido.
- Pois olhe o meu caro amigo que eu sou do tempo em que nas aldeias se matava por dois motivos. Por amor ou pela falta dele, se é que me faço entender, ou por causa da água. Estivesse um cristão na posse dela e andasse a regar, e que alguém lha cortasse. Nem havia palavras trocadas, vinha em cata dela rego acima, e encontrado o prevaricador, levava uma cacholada no lombo que o rebentava. Se a pontaria fosse certa, era cabeça aberta e quatro tábuas para ir para o jardim das tabuletas. - Também era um bocado de mais.
- Aos olhos de hoje, sem dúvida que era. Mas sabe que os tempos eram duros e as pessoas eram mais brutas. Ou antes, agora são mais polidas, pelo menos, que brutidade e bestas de gravata é o que mais por aí há por esse mundo de Deus afora. Burrice então é aos montes.
- Nisso posso garantir-lhe que sim. Olhe quer um exemplo ainda em relação à agua? Portugal andou mais de cinquenta anos a discutir se fazia ou não a barragem de Alqueva lá em baixo no Alentejo, terra de pouca água como se sabe. Decidiu-se e com os dinheiros da União Europeia fez-se um lago enorme de regadio para milhares de hectares. Os agricultores portugueses venderam as propriedades aos espanhóis porque não dava, e agora grosso modo é a Espanha que aproveita. Aquilo são oceanos de oliveiras e de amendoeiras a perder de vista. Lá está a água faz a diferença.
- Nem é preciso ir a doutor de Coimbra para se saber disso.
- Não é, mas esquecemo-nos muito. Hoje sou eu que lhe estou a dar uns conhecimentos e a falar mais. Sabe que quem estiver atento ao que se passa no planeta, facilmente se apercebe que a água é um recurso cada vez mais escasso. Dizem até que vai ser uma das principais causas das guerras no futuro. Há milhões de seres humanos que nem acesso a um copo dela têm, infelizmente.
- Mais uma coisa a acrescentar à burrice que por aí se espalha e de que falávamos há migalho. Com tanto rio a correr sem empecilho direitinho ao mar, como é que não se lembram de aproveitar melhor a água que escorre quase sem préstimo a não ser o de dar beleza ao que se vê? Antes ainda havia os moleiros que moíam o cereal em tudo o que era riacho. Agora nem isso.
- Espertos são os espanhóis que apanham os rios do lado deles, manda-nos a água que não podem reter e aproveitam-na. Até a levam do Norte para o Sul para abastecimento e para a agricultura. Mas olhe que é preocupante. Mais parece que a África se aproxima de nós.
- Qualquer dia somos Marrocos de Cima. Por falar em cima. Já imaginou o meu amigo o que vai acontecer às vinhas do Douro lá para cima do Pinhão daqui a dez ou quinze anos? Aquilo já é uma dor d’alma com a seca, imagina-se por este andar o que vai ser. Não sou bruxo, mas fica tudo a monte.
- Pode acontecer sim senhor. Chove por lá mesmo muito pouco. Ao nível do interior do Alentejo. Pode ser que então se valorizem as terras cá de baixo, que por este andar viram silvados qualquer dia.
- Mas olhe. Depois se verá e não vale maus agoiros. Deixemos esta conversa da água e vamos beber um copito de vinho que tenho ali e é de estala. E o salpicão? Nem lhe digo. Venho ver. E foram. Ou antes, e comeram e beberam.