Manuel Igreja
Da cidade para o campo
Dada a natureza das coisas em si mesmas, sempre que desafortunadamente uma pandemia se faz sentir, as sociedades por ela abrangidas são rachadas de alto a baixo por um raio destruidor que as abala, as modifica e por vezes, ironia das ironias, as faz avançar.
Serão coisas do diabo ou de alguém por ele, mas passados os dias malditos de horror, porque nada para nem pode parar, a humanidade sempre se adaptou, sempre sofreu e sempre ultrapassou. Umas vezes mudando alguma coisa para que tudo fique na mesma, outras, aproveitando as singulares oportunidades à mão de quem as apanhar.
Neste ano do nosso descontentamento, fomos colocados perante a nossa frágil condição quando nos julgávamos grandes e imunes em quotidianos repletos de certezas em coisa nenhuma, apesar de nos termos como senhores de todas as verdades.
Vivemos dias de desassossego. O vírus que nos pôs mudos e quedos continua à solta e à espreita, levando-os a um modo de vida antes impensável e criando em nós a sensação de que o antes foi uma verdadeira idade e de ouro e não sabíamos. Resta-nos a esperança na ponta de uma seringa que tarda, mas se não atarda.
De entre as modificações eventualmente estruturais que podemos sentir como concretas no sentido em que já com elas se vive, existe a possibilidade de ser trabalhar de longe e em qualquer canto, desde que existam ondas electromagnéticas suficientemente fortes, para desempenharem o papel de autoestradas da informação.
A modernidade com as suas coisas, levou a que muitas pessoas com saberes sólidos no seu mister, tenha dado conta de que pode trabalhar a partir do campo, de locais sem multidões, mas com muitas aptidões que podem ajudar na melhoria da qualidade de vida.
As distâncias passaram a ser medidas em tempo de percurso e não em quilómetros, quase deixou de haver o longe, tudo ficou ao pé. Profissionais que trazem o escritório dentro duma mochila, mostram-se encantados e disponíveis para se fixarem no campo, sem que isso implique cortar a ligação com a cidade.
Existem todas as condições para que a sua vida decorra com um pé lá e com outro pé cá. Será bom para o campo e para a cidade. Será ótimo para o planeta que fica menos intoxicado com fumo dos canos de escape dos automóveis e do barulho dos aviões repletos de gente com pressa de ter pressa.
Não se sabe bem se estes novos habitantes no campo, serão uma mera mancha na paisagem, ou se farão parte integrante das comunidades em que se fixem. Pode até haver um tempo em que se sintam asfixiados pela pequenez de certos horizontes e em que se sintam surdos com o som do silêncio.
O futuro a Deus pertence, como diziam os antigos. No entanto, cabe aos que estão no presente, vislumbrar e aproveitar a oportunidade que pode advir deste novo contexto nunca sonhado e nunca desejado. Ver os lírios no campo é maravilhoso, mas não chega.
Pode nem parecer, mas pouco falta para que tudo isto seja passado na voragem dos dias da História. Cabe aos do campo mostrar aos da cidade que valem a pena a mudança. Só assim as gerações mais novas que despontam no campo, sentirão que afinal o campo também pode ser cidade com lantejoulas e luzes da ribalta.