Chrys Chrystello
Democracias armadilhadas
Crónica 237 democracias armadilhadas 28.2.2019
- DEMOCRACIAS ARMADILHADAS
Cresci numa Ditadura. Havia quem lhe chamasse branda, como brandos costumes, alegadamente, eram os do povo que a suportava. Cresci acreditando que, um dia, o país faria parte da Europa e do mundo, mas esse mundo estava tão longe que bem podia pertencer a outra galáxia. Lembro-me de ir a Tui (Galiza) comprar discos dos Beatles ou beber Coca-Cola que em Portugal eram proibidas, com medo dos miasmas contagiosos de civilizações estrangeiras. Depois, veio o dia de todas as esperanças, um 25 de abril (quase sem mortes e com cravos na ponta das espingardas) e eu, que vivia em Timor, esperei por ele que tardava a chegar (teria ido de barco?) e jamais arribou.
A Europa cresceu, o sonho da Europa Unida medrou, mas a UE cresceu descontroladamente, até ter mais olhos que barriga e ficar desesperadamente naquela palhaçada que hoje é. Por toda a parte, uma após outra as ditaduras iam sendo aniquiladas e substituídas por vários modelos de democracia onde, alegadamente, o povo e a sua vontade eram representados em parlamentos. Com a queda do Muro de Berlim e o glasnost a dar lugar a uma nova Rússia todos acreditamos que sonhar era isto, quando esses sonhos se tornavam realidade até na América Latina e América do Sul. Já então, o neoliberalismo da nova ordem mundial tinha disseminado as suas sementes com a Thatcher e o Ronald Reagan, mas nós não sabíamos que isso iria perverter todo o ocidente.
Lentamente, nos últimos vinte anos, assistimos a um constante retrocesso nas conquistas dos direitos fundamentais da humanidade, de igualdade, solidariedade e justiça. Mais do que nunca as democracias estão a ser manipuladas, criando uma aparência de vontade popular através do voto universal, mas sendo, na prática, substituídas por autocracias da Rússia aos EUA passando pelo Brasil, Venezuela e dezenas de países, sem falar daqueles onde as escolhas democráticas foram substituídas por nomeações da grande e anónima banca internacional, do grande capital, do petróleo às farmacêuticas que tudo controlam. Isto num mundo em que a verdade é ficção e a ficção é a neoverdade.
Ainda há dias, a ler Umberto Eco O Cemitério de Praga, me apercebi de que como isto sempre aconteceu sem nos darmos conta. Entretanto, países habituados a mandar e serem os xerifes do universo, como os EUA (em substituição dos decadentes grandes impérios que duas grandes guerras aniquilaram), continuam a inventar invasões, primaveras políticas, depondo ditadores ou democratas a seu bel-prazer. Dir-me-ão que a democracia ainda é o menos mau dos sistemas (como primeiro afirmou Winston Churchill). Claro que uma democracia ainda é a pior forma de governança, salvo todas as outras alternativas, e não adianta chorar sobre os defeitos da democracia: a corrupção dos políticos de todas as cores, o nepotismo, os arranjinhos parlamentares (ora agora mamas tu, ora logo mamo eu, etc.)
Há algo que sempre afirmei e reitero, mesmo que não sirva para grande coisa, o 25 de abril trouxe-me o bem mais precioso: a liberdade de expressão, a mim que sou um individualista nato e jamais conseguiria viver numa autocracia. Dantes, os países democráticos tinham eleições, os outros não (nem mesmo as mascaradas eleições do partido único em Portugal o ocultavam). Hoje assistimos a um novo e preocupante paradigma, a semi-democracia onde existe a aparência da verdadeira democracia, com eleições e tudo o mais, mas onde há resultados viciados, roubo descarado de votos e tanta manipulação que o resultado é a via autocrática transvestida de democracia oca. Assistimos, nas últimas décadas, a um ataque à democracia, e são as próprias instituições europeias quem mais tem atrofiado o funcionamento dos sistemas democráticos. A democracia é uma planta muito frágil que precisa de ser regada diariamente.
O exemplo de uma semi-democracia, semiautonómica, é bem visível nos Açores onde existe um parlamento regional e alguma teórica liberdade de escolha, mas onde todas as decisões relevantes para o povo açoriano são definidas em Lisboa, pelo governo central, ao atropelo e revelia das normas autonómicas, com a cumplicidade das forças locais no poder, mero pau-mandado dos partidos cuja sede está em Lisboa. O povo, que até nem é totalmente ignorante, vota com os pés (isto é, abstendo-se) ou vota a favor dos que o mantém, subsidiodependente. Um ciclo vicioso que se define assim: vota em mim e recebes apoios, não votas e desenrascas-te sozinho contra a malha burocrática que te vai aniquilar.
As vozes independentes, poucas e raras, vão sendo silenciadas, sem lugar a destaque nos meios de comunicação, já quase totalmente emudecidos numa onda de autocensura que lhes permita sobreviver. Estamos a caminho da autocracia, mas com a manta diáfana da aparência democrática. Infelizmente, o pior ainda está para chegar. O nacionalismo e a xenofobia chegam ao poder com o voto do povo, a Democracia, de que Churchill dizia ser o menos mau de todos os sistemas conhecidos. E até mesmo eu, que sempre me considerei um otimista nato, tenho demasiadas dúvidas, rodeado como estou por autómatos não-pensantes, obcecados com os pequenos ecrãs dos seus smartphones e impérvios aos atropelos à dignidade, equidade e justiça, que acontecem em volta,
Possa eu continuar a falar, em casa e na rua, sem medos persecutórios, mesmo que as palavras já não cheguem a muitos nem sejam lidas, e isso já me contentaria nos dias difíceis que se avizinham. Quando essa liberdade se perder, de facto terei de me conformar e aceitar que me implantem um ”chip” para o meu próprio bem, como nem George Orwell (1984 e o Triunfo dos Porcos) nem Aldous Huxley (Admirável Mundo Novo) conseguiram imaginar.
Para o Diário dos Açores (desde 2018), Diário de Trás-os-Montes (desde 2005) e Tribuna das Ilhas (desde 2019)
Chrys Chrystello, Jornalista, Membro Honorário Vitalício nº 297713 / AU 3804 [Australian Journalists' Association] MEEA/AJA]