Chrys Chrystello
Democracias armadilhadas
Crónica 179 democracias armadilhadas 12/8/2017
Cresci, como sabem, numa ditadura. Havia até quem lhe chamasse branda, como brandos costumes eram alegadamente os do povo que a suportava. Cresci acreditando que um dia o país faria parte da Europa e do mundo, e esse mundo estava tão longe que bem podia pertencer a outra galáxia.
Lembro-me de ir a Tui comprar discos dos Beatles ou beber Coca Cola que em Portugal eram proibidas com medo dos miasmas contagiosos de civilizações estrangeiras.
Depois, veio o dia de todas as esperanças, um 25 de abril (quase sem mortes e com cravos na ponta das espingardas) e eu, que vivia em Timor, esperei por ele que tardaria a chegar (teria ido de barco?) e jamais arribou. A Europa cresceu, o sonho dessa europa unida medrou e ela cresceu descontroladamente, até ter mais olhos que barriga e ficar desesperadamente naquela palhaçada que hoje é. Por toda a parte, uma após outra as ditaduras iam sendo aniquiladas e substituídas por vários modelos de democracia onde alegadamente o povo e a sua vontade eram representados em parlamentos. Com a queda do Muro de Berlim e o glasnost a dar lugar a uma nova Rússia todos acreditamos que sonhar era isto, quando esses sonhos se tornavam realidade até na América Latina e América do Sul,
Já então, o neoliberalismo da nova ordem mundial tinha disseminado as suas sementes com a Thatcher e o Ronald Reagan, mas nós não sabíamos que isso iria perverter todo o ocidente. Lentamente, nestes últimos vinte anos assistimos a um constante retrocesso nas conquistas dos direitos fundamentais da humanidade, de igualdade, solidariedade e justiça. Mais do que nunca as democracias estão a ser manipuladas criando uma aparência de vontade popular através do voto universal, mas sendo, na prática, substituídas por autocracias da Rússia aos EUA passando pela Venezuela e dezenas de países, sem falar daqueles onde as escolhas democráticas foram substituídas por nomeações da grande e anónima banca internacional, do grande capital do petróleo às farmacêuticas que tudo controlam. Isto num mundo em que a verdade é ficção e a ficção é a neoverdade. Ainda há dias a ler Umberto Eco, O Cemitério de Praga, me apercebi de que como isto sempre aconteceu sem nos darmos conta.
Entretanto, países que se habituaram a mandar e a serem os xerifes do universo, como os EUA (em substituição dos decadentes grandes impérios que duas grandes guerras aniquilaram) continuam a inventar invasões, primaveras políticas, depondo ditadores ou democratas a seu bel-prazer. Dir-me-ão que a democracia ainda é o menos mau dos sistemas (como primeiro afirmou Winston Churchill). Claro que uma democracia é a pior forma de governança, salvo todas as outras alternativas, e não adianta chorar sobre os defeitos da democracia: a corrupção dos políticos de todas as cores, o nepotismo, os arranjinhos parlamentares (ora agora mamas tu, ora logo mamo eu, etc.
Há algo que sempre afirmei e reitero, mesmo que já não sirva para grande coisa, o 25 de abril trouxe-me o bem mais precioso: a liberdade de expressão, a mim que sou um individualista nato e jamais conseguiria viver numa autocracia.
Dantes, os países democráticos tinham eleições os outros não (nem mesmo as mascaradas eleições do partido único em Portugal o ocultavam). Hoje assistimos a um novo e preocupante paradigma, a semi-democracia onde existe a aparência de uma verdadeira democracia com eleições e tudo o mais, mas onde a realidade não está representada, com resultados viciados, roubo descarado de votos e tanta manipulação que o resultado é a via autocrática transvestida de democracia oca.
O que temos assistido nas últimas décadas é um ataque à democracia, e são as próprias instituições europeias quem mais tem atrofiado o funcionamento dos sistemas democráticos. A democracia é uma planta muito frágil que precisa de ser regada diariamente.
Como escrevia em 2015 Elísio Estanque[1]
Por um lado, são os poderes económicos de um capitalismo desenfreado, rendido à força do mercado e do dinheiro e aos múltiplos interesses que à sua sombra se expandem, mortalmente lesivos dos princípios democráticos. Financiamentos ilegais de campanhas eleitorais, promoção de testas de ferro, candidatos fantoches, quadros e dirigentes ao serviço de esquemas dominados pela corrupção, etc., são exemplos de que o vírus cancerígeno da democracia tudo subverte. Por outro lado, são as próprias estruturas partidárias que, na sua obsessão pelo poder, alimentam as mais perversas ligações e oligarquias na defesa das suas negociatas, reprimem o contraditório e combatem o debate democrático interno, que são a essência da democracia política
O exemplo de uma semi-democracia semi-autonómica é bem visível nos Açores onde existe um parlamento regional e alguma teórica liberdade de escolha, mas onde todas as decisões relevantes para o povo açoriano são definidas em Lisboa pelo governo central, ao atropelo e revelia das normas autonómicas, com a cumplicidade das forças no poder. O povo que até nem é totalmente ignorante vota com os pés (isto é, abstendo-se) ou vota a favor dos que o mantêm subsidiodependente, num ciclo vicioso que se define assim: vota em mim e recebes apoios, não votas e desenrascas-te sozinho contra uma malha burocrática que te vai aniquilar.
As vozes independentes, são poucas e raras e vão sendo silenciadas sem lugar a destaque nos meios de comunicação totalmente silenciados numa onda de autocensura que lhes permita sobreviver.
Estamos a caminho da autocracia, mas ainda com a manta diáfana da aparência democrática. Infelizmente, o pior ainda está para chegar. O nacionalismo e a xenofobia chegam ao poder com o voto do povo, a Democracia, de que Churchill dizia ser o menos mau de todos os sistemas conhecidos. E até mesmo eu, que sempre me considerei um otimista nato, tenho demasiadas dúvidas, rodeado como estou por autómatos não-pensantes, obcecados com os pequenos ecrãs dos seus smartphones e impérvios aos atropelos á dignidade, equidade e justiça que acontecem em volta como se pode ver nesta imagem do Titanic a afundar-se e os náufragos a tirarem “selfies”.
Possa eu continuar a falar em casa e na rua, sem medos persecutórios, mesmo que as minhas palavras já não cheguem a muitos nem sejam lidas, e isso já me contentaria nestes dias difíceis que se avizinham. Quando essa liberdade se perder, de facto só terei de me conformar e aceitar que me implantem um ”chip” para o meu próprio bem tal como nem George Orwell (1984 e o Triunfo dos Porcos) nem Aldous Huxley (Admirável Mundo Novo) conseguiram imaginar.