Barroso da Fonte
Do naufrágio mortal no Rio Douro ao 25 de Novembro de 1975
Na noite de 22 para 23 de Novembro de 1964, oito instruendos do 3º curso de operações especiais de Lamego naufragaram no Rio Douro, entre Caldas de Aregos e Mosteiró. Só o furriel José Dutra, açoreano, desapareceu. Mas foram oito aqueles que entraram no pneumático, às 22 horas, vencendo as correntes, os redemoinhos, a escuridão e o gelo.
O naufrágio envolveu apenas esses oito militares, mas preparava-se para implicar 64 instruendos. Cada pneumático, embora só tivesse capacidade para 4, levava oito jovens, entre oficiais e sargentos milicianos. Um deles era instrutor.
Dos 64 instruendos, metade eram aspirantes e os restantes cabos milicianos e/ou sargentos. Todos jovens que se preparavam para formar companhias e batalhões, rumo ao Ultramar. Nessa altura do curso de quatro meses, já depois de terem tido cerca de meio ano de instrução, foram repescados nas unidades militares de todo o país, para serem reintegrados nas mesmas unidades, com vista a serem mandados para as províncias ultramarinas. Os dois oficiais de carreira, com a patente de tenentes do quadro, tinham regressado dos EUA, onde haviam obtido a formação que impuseram nesse curso de experiência.
Essa inédita tentativa, no rio mais caudaloso do país, agravado pela escuridão e pelo gelo, poderia ter sido fatal para todos os 64 tripulantes, muitos dos quais não sabiam nadar. Valeu o risco que esse primeiro barquito correu, naufragando. Nenhum dos sete restantes pneumáticos entrou nessa tenebrosa ratoeira, que foi provocada pela corrente traiçoeira. Dois oito náufragos, quatro ficaram expostos durante cerca de uma hora agarrados à jangada. O signatário era um desses que não se desprenderam do pneumático, até serem recolhidos por barqueiros profissionais. Três daqueles que estavam preparados para remar, caíram logo à água gelada, ficando sem barco e sem arma. E conseguiram gritar ao grupo dos 56 ainda na margem, alertando para não entrarem na água. Faltava o José Dutra, cujo corpo, completamente desconfigurado, apareceu somente no dia 26 de Dezembro. A canzoada das aldeias de Portozelo e de Mosteiró, contíguas ao rio, foi utilíssima para salvar o quarteto agarrado às cordas do pneumático, exausto e congelado, após cerca de uma hora a percorrer os cerca de cinco quilómetros entre Caldas de Aregos e Mosteiró.
À passagem por alturas de Portozelo, um grupo de pessoas que jogava sueca ao serão, gritaram para que aguentássemos, para nos salvarem. E foram verdadeiros salvadores.
De 23 de Novembro a 26 de Dezembro nada mais se soube do Ranger desaparecido.
Coincidiu que o Parlamento, entre polémicas estéreis, fingidas umas, raivosas outras e caricatas quase todas, não fizesse qualquer alusão aos mártires dos treze anos de guerra.
Como decano dos jornalistas portugueses vivos, e a cerca de um mês de completar 72 anos de dedicação ininterrupta à comunicação social, saio a terreiro, para lamentar o simbolismo de todos aqueles que gracejaram, pelos 60 anos dessa data. Não posso inocentar aqueles que, ocupando uma cátedra do maior respeito, para mais pelos Portugueses da geração da guerra do Ultramar, que foi forçada ao tipo de preparação em ambientes como o naufrágio de 22 de Novembro de 1964.
Escrevo esta crónica a 3 dias de distância dos 60 anos do 25 de Novembro de 1964. Já nessa data
eu tinha 11 anos de jornalismo. Mais: foi o JN de 23/11/1964 que noticiou esse naufrágio. Apesar do escasso relato desse grave acidente, foi o primeiro órgão noticioso a informar o País.
Os militares envolvidos nesse acidente eram quase todos milicianos. Só eles e os filhos do povo foram escravos do mau serviço em que foram envolvidos.
Sessenta anos certos de distância já deveriam ter sido explicados àqueles que, sendo agora mais novos, não deveriam distorcer os factos.
Com este espírito conformista entendi escrever sobre o 25 de Novembro de 2024. A História do 25 de Abril abriu a porta a quantos pretendiam entrar. Quem contesta o 25 de Novembro de 1975 não deveria mamar o leite da vaca. Depois da porta aberta, ninguém deve ter moral para rejeitar e difamar quem subiu, com muito estoicismo, paciência e tolerância, as escadas da democracia.
Barroso da Fonte