Manuel Igreja

Manuel Igreja

Douro : A lucidez que falta e que urge

Já vem de longe, de muito, longe, a fama do vinho do Porto, e muito andou para aqui chegar. Há memórias e histórias repetida, mas quase esquecidas, há injustiças vividas, agres vidas vividas, vitórias em cada final de vindima sentidas, ilusões e alegrias sentidas, amargos de boca e humilhações, grandiosidade erguida e vontades que permitem enrolar os pampos com mãos que acariciam as promessas esperadas e renovadas.

Começou com os romanos calcorreantes e conquistadores do mundo, estagnou com os árabes a quem não se lhes dá para beber, foi renascida e melhorada com os monges de Cister, apreciadores e donos dum mar de terra daqui até ao oceano, foi embarcada nas caravelas que sulcando as águas sem fim toparam com novos mundos, foi notada por viajantes no século XVI que finos para o negócio não mais a largaram de mão e lhe foram pondo o olho.

Virou negócio de monta, o negócio de vender vinho além-fronteiras depois de se virar a terra para o fazer haver. Em 1703, merecedor de reparo e digno de negociação abrangente, celebrou-se entre os reinos de Portugal e de Inglaterra um Tratado que potenciou o comprar e o vender do vinho generoso que se exportando, permitia a vinda de outras mercadorias para suprimento dos dias. Os têxteis de muitas serventias.

A procura cresceu e a oferta respondeu. O Douro foi crescendo. Fabricou-se terra com as fragas, cortaram-se silvados, britaram-se fraguedos, plantaram-se vinhedos com arte, fez-se vinho com saber de experiência feito. A natureza ajudava e ajuda, e os homens e as mulheres, e as crianças, fazendo das tripas coração não se negaram a criar jardins de eleição.

No entanto, a cada passo do negócio dado no exponenciar, desde logo surgiu com repetição o monstro da desigualdade e do desequilibro entre as partes envolvidas no processo de concretizar. Se o comércio como lhe é próprio foi fino e lesto, a lavoura ainda em moldes medievais, limitou-se a granjear os bens ao luar, espremendo-se na labuta e rezando para fizesse sol na eira e chuva no nabal.

Andava o século XVIII pelo seu meado e já se escreviam queixas e lamúrias a quem quase tudo podia, para que se agisse em prol dos mais fracos perante os desmandos de quem não olhando a meios, se abotoava substancialmente com as melhores partes do bolo. Somente os restos, migalhas, ficavam para quem cuidava das videiras como filhas e dos bardos como fileiras de filhos.

No entanto, até agora foi-se indo, nesta atividade económica de forte pendor social, em que meia dúzia de parceiros adquirem e distribuem quase tudo do produto exclusivo e sem concorrência que é o vinho do Porto. Dizem os registos fonte da história, que perante a característica muito própria em causa, quando se regulamentou a situação de desequilíbrio melhorou, e que quando por opção as regras se ausentaram, ele se agravou. Obvia e consequentemente a favor repetidamente dos mesmos.

Ao longo dos quase três séculos, a coisa foi sendo cómoda. O Comércio navegou à vista, bastando-lhe seguir a linha da costa, pois a mercadoria nascia vendida e com os preços sempre a jeito. Por sua vez, a Produção, bastava-lhe orientar quem calcorreava as vinhas a troco de meia sardinha e de um pedaço de pão. O vinho depois do pintor nos cachos, já se sabia vendido. Sem preço, mas sempre a modo de cobrir gastos e gostos.

Mas os ventos mudam e trazem novos tempos. São agora de quem melhor se adapta e não só de quem é mais forte. São anos em que se não pode ficar só à espera que chova e que outros resolvam. As linhas da matriz esbateram-se ao ponto de quase não haver regras. Não adianta dizer-se de exigências e queixumes desadequados como se o quotidiano sofrido estivesse a acontecer num palco com o cenário de fundo a mudar sem que os atores se apercebam.

Novos hábitos e novos modos de viver, cartilhas impostas lavradas pela intolerância em que se confunde apreciar e beber vinho, com vício alcoólico, pecado de ir dar ao inferno, e a falta de posses da classe média em vias de extinção, estão a levar a uma muita forte diminuição de consumo. Voltamos metaforicamente ao quartilho de vinho que se ia buscar à venda para a refeição. Daí o alargado recurso ao vinho muito mais barato, ao preço da uva mijona.

Sabemos que a vindima de 2024 já no início, pode ser a do nosso mais sofrido descontentamento. Diz quem sabe que pode ser o princípio do fim deste nosso modo de vida redor de cada vinha feita como sendo um prolongamento do jardim da nasso casa. Uma horta onde em cada cacho de uvas, está o nosso coração à espera de uma vindima farta e alegradas com os aromáticos mostos no lagar.

No entanto, há ideias e soluções. Os caminhos podem pontual ou profundamente divergir, mas os interesses são comuns. Pelo menos o principal. Os ânimos andam exaltados e as almas desassossegadas. Há confusão, muita exaltação, muito temor e somente uma réstia de esperança.

Há muita conversa desbaratada e muita tinta a correr, mas quase nenhuma informação e pouca ponderação. Como é próprio, cristalizam-se as mentes com verdades absolutas, não cientes de que quando alguém afirma que sabe tudo, é porque anda mal informado.

A catástrofe anunciada ainda não aconteceu. Pode estar prestes. Para que esta crónica não passe a de uma morte anunciada e enquadrada, urge, pois, que a lucidez no Douro vá muito para lá de um ensaio. Que brote por entre as parras sustentadas pelas raízes que buscam com que fazer a seiva por entre as pedras de xisto. Bem lá no fundo da terra, para nos darem os néctares.

São eles a nossa essência.



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