Manuel Igreja
Em Banho-Maria
O título não é meu. Começo por dizer. Vi-o há dias num jornal como nome de um estudo sociológico. Nele também não está sequer a intenção de enveredar pelo aconselhar de recomendações sobre qualquer cozinhado feito ou a fazer, apesar da sugestão imediatamente sugerida que uma pessoa pele-se logo por coisas boas.
Também não é acerca do banho da Maria ou sequer da Maria no banho, que quanto a isso, não sei de nada, a não ser que a língua portuguesa é muito traiçoeira, como em tempos dizia prazenteiramente um certo humorista da nossa praça, hoje caído quase em desgraça naquilo que prova que não há mal que se não acabe, nem bem que sempre dure, e que avida, como os interruptores, ora está em cima, ora está em baixo.
O meu intuito é muito mais referir-me aos milhares de rapazes e raparigas que estão no Limbo, a aguardar melhores dias, e a quem, não sei se fui perceptível, tentei agora ali dar uma certa mensagem de esperança. De modo algum poderei ter-me ou ser tido como versado em assuntos da Bíblia, mas o Limbo, é no imaginário sagrado um local onde as crianças que morrem antes do baptismo, e mais os que nasceram antes de Cristo, aguardam a redenção que há chegar no final dos tempos.
Não podem entrar para o paraíso e nem sequer para o purgatório, por falta de baptismo, mas também não há de que mandá-los para o inferno, uma vez que não é culpa sua a ausência de condição de elemento bom ou mau da família de Deus. Ficam ali à espera. Não sei se se impacientam ou aquecem o lugar, mas estou que não pois naquilo da eternidade tudo se passa de outra forma e com outras medidas de tempo e de objectivos.
Basta um pouco de imaginação. Olhando em nosso redor mesmo sem olhar de cientista social, nada custa até que se conclua que toda uma geração hoje em dia quarentona foi mandada para o Limbo. Excepções à parte, pois sempre as há, homens e mulheres com qualificações suficientes para os manejos da vida, aguardam que se desatem os nós que os impedem de voar. Já tentaram sair do ninho e bater asas, mas não encontram espaço livre. Os horizontes estão-lhes cortados. Não resolvem a sua vida, porque o seu viver não se desenrola. Não encontram terreno onde colocar pé firme em direcção ao futuro que mesmo não sendo o que era, obrigatoriamente deve ter uma via com linhas orientadoras.
Enquanto isso vegetam à medida que o inexorável passar dos anos lhes branqueia os cabelos. Não casam porque não têm casa, e não têm casa porque não casam. Os que se aventuram, porque vivem no fio da navalha, mandam vir um filho, quando muito dois, mesmo que o sonho anteveja uma prole maior, e pronto, vão fazendo o trilho sempre à espera da surpresa má ao virar da esquina. O receio para não dizer medo, entranhou-se-lhes na alma.
Uma geração penada aguarda pela redenção que tarda. Não tem culpa dos pecados de quem fez os desmandos insanos que colocaram o mundo ocidental, o nosso, à beira do precipício, mas não podem aceder à plenitude de um quotidiano equilibrado, mais justo e mais cheio de oportunidades, à semelhança da geração antecedente. No fundo, é como se estivessem metidos num enorme caldeirão a esquentar em banho-maria, à espera do tempo que há-de vir, mas não vem porque alguém não deixe que venha.
Entretanto, nesta forma de se construírem as coisas deste nosso mundo, a geração que se segue, desponta para a realidade. Eventualmente poderá não ser colocada no Limbo, mas vai continuar em banho-maria. Vai arranjando maneiras de ganhar o pão-de-cada-dia ofertando muito trabalho por pouco dinheiro. Sabe que para pior já basta assim, por isso, questionar é algo que nem lhe passa pela cabeça. A injustiça e a exploração assumiram contornos de coisa natural. Enquanto isso, coze-se a bom cozer a geração mais velha, para que haja sustento que baste para uns e para outros.
Desengana-se quem julgue que o Limbo, este tão concreto e próximo, é fruto do acaso ou de imponderáveis. Não senhor. Graças a ele, o admirável mundo novo retoma contornos do mundo velho quando muito poucos tinham muito, e muitos tinham quase nada para que assim fosse. Estamos a voltar ao século XVIII, desta vez com uma aristocracia que o não é de sangue mas de dinheiro, e com uma plebe tão numerosa como ansiosa.
A ver vamos no que vai dar. Mas tenho para mim, que um dia destes a panela pode ir ao ar. Convém ter sempre em conta que o mais importante são as pessoas com tudo o que anseiam e são capazes.