Manuel Igreja

Manuel Igreja

Em modo criança

Para a criança que fui e ainda sou, pois sei de onde vim, onde estou e para onde vou.

Fui criado e já criei. Sonhei e concretizei. Mas continuo a guardar em mim todos os sonhos do mundo.

São simples. Só quero ver nos campos o florir e, em cada rosto de todas as crianças, aquele sorriso lindo e aberto que nos fala de todas as esperanças.

Ainda quero dependurar-me de pena para o ar e de cabeça para baixo nos ramos das árvores para ver o mundo ao contrário, mesmo sabendo que assim o verei direito porque sinto que ele anda sem tino e ao contrário.

Sou bem capaz de lançar um pião e apanhá-lo do chão para o fazer rodopiar na mão desejando que ele seja um globo que nunca para no giro sobre o seu eixo, uniforme e conforme as normas do bom-senso.

Também não desdigo a andar com arco, como fazia nos tempos idos. Basta um rebordo de pneu e uma gancha de arame e não haverá quem me pare o correr numa viagem com os pés no chão e bonito bólide na imaginação.

Até mesmo brincar aos índios e cobóis de arco e flecha na mão, revólver no coldre e estrela de xerife no cinto das calças. Pois, e chapéu com as abas viradas para cima como se impõe não vá o sol do deserto estorricar a mioleira e o pó das ruas descalcetadas impedir a eficácia do olhar que se quer atento, como manda a sapatilha, num modo de dizer.

Vou nessa, para já nem falar numa viagem pelo cosmos num foguetão daqueles que vão até à lua ou mais além. Quem me dera ver lá no alto onde se vê a Terra feita um pontinho brilhante numa visão que faz qualquer concluir do quanto é insignificante perante a imensidão desmedida e só imaginada. Também ia se pudesse. Assim, como não vou, imagino com o poder da criança que ainda sou.

Mas poder mesmo a sério e que mais desejo, é o de ser dono de uma varinha de condão, daquelas que com um mero e simples toque e um pequeno dizer, fazem acontecer no momento certo. Isso é que era! Não haveria impossíveis mesmo daqueles que deixam de o ser porque com realismo foram exigidos.

Se a tivesse, não haveria pessoa alguma para quem o céu estrelado tivesse somente a serventia de teto, e o brilho do luar a ténue utilidade de fazer enxergar um pouco melhor por falta de canto de acolhimento minimamente condigno. Ninguém passaria frio nem calor por falta de agasalhos ou de frescura porque cobriria tudo com ternura.

Bem sei. Já não tenho quem me dê colo nem me acolha no regaço e nem quem me dê daqueles afagos que chegam ao coração, mas esforço-me para que a criança que existe em mim não desapareça. Não pode, se não morro mais um pouco. Sei que vou fenecendo e que cada dia que acrescento é mais um que me falta, mas quero continuar a sentir que tudo pode ser inteiro na eternidade de cada segundo.

Por isso enquanto houver estrada para andar, irei rumo à terra do nunca num carrinho de esferas, de rolamentos, mesmo que escangalhe as sapatilhas no travar com o calcanhar no chão em cada curva dos caminhos da vida. Sem correr muito e sem pressas, pois sei que devagar anda a lua e dá a volta inteira à terra sem que alguma coisa a empurre.

Não sei se mais alguém sente esta vontade. Mas se for o caso, venha daí. Mas antes, vamos escorregar numa fraga com o cu no chão. Colocamos uma lata por debaixo do dito para escorregar melhor, e é uma alegria. O rasgão nas calças é mais que certo, mas o puxão de orelhas não o será por falta de quem o dê. Ainda sinto as minhas a ferver, apesar de os anos em que me foram dados serem mais que muitos.

Seguindo em modo criança, só desejo mesmo é ter um cavalo alado. Se o tivesse, iria nele para todo o lado espalhando pozinhos de perlimpimpim para que tudo brilhasse para si e para mim. Claro que nem podia deixar de visitar os Gloriosos Malucos das Máquinas Voadoras e até mesmo a Bela Adormecida ainda que não me sinta um príncipe. A Branca de Neve, acho que não. Coisas cá minhas.

E o Zorro? Esse não podia faltar. Caso ele me aceitasse como companheiro, lutaria com ele e com o seu cavalo Relâmpago, um verdadeiro alazão negro, contra os tiranos deste mundo a favor dos explorados para que jamais houvesse adultos que nunca foram crianças, nem pessoas a quem falta o poder de sonhar porque a vida lhes surge como uma sombria realidade.

No fundo e findando, fico-me pelo crer que mesmo que um dia isto ainda acabe mal, só nos resta desejar morrer jovens o mais tarde possível. Será que conseguimos? A ver vamos.



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