Luis Guerra

Luis Guerra

Enfim, a descentralização

A recente tomada de posição do Presidente da Câmara Municipal do Porto sobre a iniciativa de descentralização do Governo, ameaçando abandonar a Associação Nacional de Municípios Portugueses (ANMP), veio chamar a atenção para os problemas que este processo está a suscitar.

Em primeiro lugar, independentemente de se concordar ou não com o modelo descentralizador proposto pelo Governo, não há dúvida que abandonar a negociação coletiva para procurar obter maiores vantagens na negociação individual implica fragilizar os municípios mais pequenos (não em território, mas sim em população), como é caso de muitos concelhos transmontanos, que não têm o mesmo peso político do que o município do Porto para pressionar o Governo no que respeita às contrapartidas financeiras da transferência de competências.

Por outro lado, parece evidente que num processo tão sensível e importante como este, a democracia representativa tem os seus limites, pelo que a ANMP deve auscultar os seus associados sobre o acordo a que possa ter chegado com o Governo neste domínio, de forma a que a generalidade dos municípios portugueses se possa pronunciar sobre o mesmo, confirmando-o ou levando a sua Direção a renegociar o mesmo.

É certo que o acordo da ANMP não é legalmente obrigatório para se levar a cabo esta reforma legislativa, bastando a sua audição, mas é evidente que seria um mau começo fazê-la contra a maioria dos municípios.

Em terceiro lugar, seria importante que a população portuguesa fosse informada do que está em jogo e pudesse tomar parte nesta discussão, porque a transferência de competências para os municípios em domínios tão importantes como a Saúde, a Educação e a Ação Social não é inócua, já que pode contender com a satisfação de direitos fundamentais sociais em condições de igualdade entre todos os portugueses.

Nesse sentido, pode questionar-se a razão da desconexão entre este processo de municipalização de competências e a prometida regionalização, com a necessária articulação entre o âmbito local, regional e nacional, bem como qual o motivo de se submeter a referendo popular apenas a segunda, mas não o primeiro.

Não se desconhece que, nos termos constitucionais, a criação das regiões administrativas é matéria da competência absoluta da Assembleia da República e implica uma consulta popular referendária de alcance nacional e relativa a cada área regional, enquanto a transferência concreta de competências e meios financeiros para os municípios pode ser efetuada por decreto governamental, a partir da definição das suas bases pelo Parlamento. Mas a verdade é que subsiste a necessidade de um amplo e efetivo debate na sociedade portuguesa sobre o processo de municipalização em curso, que permita compreender as suas vantagens e riscos para a população - em função dos meios financeiros a disponibilizar aos diferentes municípios, em particular nos setores acima aludidos -, e que a aprovação parlamentar da respetiva Lei Quadro de Transferência de Competências não esgotou.

Em qualquer caso, não se discute aqui as virtudes da descentralização, enquanto processo de aumentar a participação dos cidadãos nos processos de decisão que lhes dizem respeito, bem como de aumentar a eficácia na gestão dos recursos públicos disponíveis, com base num modelo político de proximidade.

E também se reconhece que, na maior parte dos casos, os municípios têm condições para receber novas competências, uma vez que muitas das suas atribuições iniciais já foram cumpridas, designadamente ao nível da infraestruturação do seu território.

Contudo, é necessário que esta descentralização não se traduza num modelo pulverizador, que deixe as populações locais reféns da capacidade de gestão financeira do município onde residem para terem respostas de qualidade ao nível dos serviços públicos de Saúde, Educação e Ação Social, sem que possam encontrar amparo subsidiário na administração pública central. Nesse sentido, será importante contar com uma espécie de Fundo de Coesão que permita corrigir assimetrias no que respeita à capacidade de cada município assegurar o exercício das competências transferidas, quando o volume de investimentos, nomeadamente na construção ou conservação do parque escolar e de equipamentos de cuidados de saúde primários, assim o exija.

Deste modo, sem deixar de reconhecer que o processo em curso vai ao encontro de uma aspiração antiga de maior descentralização administrativa, importa fazer um acompanhamento crítico da condução do mesmo, evitando que os municípios assumam competências para as quais não tenham depois meios suficientes, prejudicando os cidadãos.

Finalmente, não há dúvida que a prevista transferência de competências no setor da habitação é insuficiente para responder às necessidades sentidas neste domínio pela população portuguesa, particularmente nas grandes cidades onde o custo da habitação tem vindo a aumentar significativamente.  

Neste domínio, seria necessário avançar-se no sentido de dar um conteúdo efetivo ao direito à habitação consagrado constitucionalmente, definido a posição jurídica dos cidadãos perante o Estado e as autarquias locais neste domínio, em função das suas necessidades e possibilidades, de tal modo que nenhum agregado familiar tivesse que afetar mais de um terço do seu rendimento para ter uma habitação digna e suficiente.

 

Luís Filipe Guerra, juiz e membro do Centro Mundial de Estudos Humanistas

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